1 de outubro de 2013

O PREÇO DE UM HOMEM (THE NAKED SPUR) – A OBRA-PRIMA DE ANTHONY MANN


A colaboração entre Anthony Mann e James Stewart durou de 1950 a 1955 e rendeu oito filmes antes de ambos se desentenderem durante as filmagens de “A Passagem da Noite”.* Cinco dos oito filmes em que Mann e Stewart trabalharam juntos foram westerns e formam um conjunto admirável de películas que pontificam não só em suas próprias filmografias, mas dentro da história do faroeste. Dessa quina se destaca “O Preço de um Homem” (The Naked Spur), rodado em 1953, terceiro western da parceria de Anthony Mann com James Stewart.
(*) Ler o artigo ‘James Stewart-Anthony Mann – O fim de uma parceria e de uma amizade’ neste blog.


Stewart e Mitchell e o procurado.
Três homens e uma recompensa - A história de “O Preço de um Homem” é de autoria de Sam Rolfe e Harold Jack Bloom, escritores que nunca se sobressaíram no cinema e que passaram a maior parte de suas carreiras escrevendo para séries de televisão. Esse fato confirma a maestria com que Anthony Mann filmou a trama simples envolvendo quatro homens e uma mulher, trama na qual a cobiça é o elemento fundamental. Howard Kemp (James Stewart) é um caçador de recompensas que persegue o criminoso Ben Vandergroat (Robert Ryan), procurado pela justiça e pelo qual há uma recompensa de cinco mil dólares. Vandergroat está acompanhado pela jovem Lina Patch (Janet Leigh) e a Kemp se juntam o garimpeiro Jesse Tate (Millard Mitchell) e o tenente Roy Anderson (Ralph Meeker) desligado do Exército da União. Kemp se faz passar por xerife mas é desmascarado por Vandergroat que demonstra que o único objetivo de Kemp são os cinco mil dólares da recompensa por sua captura. Kemp se vê obrigado a aceitar a associação de Tate e Anderson na partilha da recompensa. Vandergroat consegue se armar e mata o velho garimpeiro Tate, sendo depois morto pelo tenente Anderson. O corpo de Vandergroat cai num rio de forte correnteza, sendo resgatado por Kemp enquanto Anderson morre na tentativa de resgatar o corpo de Vandergroat. Ao final Kemp desiste de conduzir o cadáver do bandido e com isso abre mão da recompensa, rumando com a jovem Lina para a Califórnia.

O magnífico Robert Ryan; abaixo Ryan,
Mitchell, Janet e Ralph Meeker.
Maquiavélico vilão - “O Preço de um Homem” aborda o tema da cobiça que rendeu obras-primas como “Ouro e Maldição” (1924) e “O Tesouro de Sierra Madre” (1948) e que foi levado ao cinema incontáveis vezes. O personagem principal deste western de Anthony Mann não é, desta vez, movido pela vingança, mas sim pela necessidade que tem de recompor seu passado destruído por uma mulher que o traiu. Tendo perdido seu rancho, Howard Kemp precisa da recompensa para reaver sua antiga terra e para isso, feito um animal faminto, segue a trilha da presa que representa cinco mil dólares, o criminoso Ben Vandergroat. Após passar a vida toda inutilmente em busca de um veio de ouro Jesse Tate vê na captura de Vandergroat a oportunidade de ter algum dinheiro. Já o tenente Anderson, tendo recebido dispensa desonrosa do Exército, vê na partilha da recompensa uma compensação ao irrisório soldo militar. Além dos cinco mil dólares há ainda a presença da jovem Lina Patch por quem o mulherengo Anderson se sente atraído e que desperta em Howard Kemp o sentimento destruído pela noiva que o abandonou. Todos os quatro tornam-se presas fáceis para o poder de intriga do maquiavélico Vandergroat. Em poucas horas de forçada convivência Vandergroat passa a conhecer as fraquezas de seus captores e joga astuciosamente com essas fraquezas esperando o momento de escapar.

James Stewart como Howard Kemp.
Herói neurótico - Os heróis dos westerns de Mann têm em comum serem homens atormentados, mas nenhum deles atingiu o grau de desespero de Howard Kemp em “O Preço de um Homem”. Mais que atormentado pela necessidade da recompensa, Kemp se mostra neurótico e quase irracional. E como contraponto Mann cria também seu mais cruel bandido pois a maldade de Vandergroat não é apenas física mas, e principalmente, psicológica. Ben Vandergroat torna-se pior à medida que se considera injustiçado por ter sido a escolha de Howard Kemp para ser o objeto da implacável caçada do ‘bounty hunter’. A mente de Vandergroat parece jamais descansar e inteligentemente ele provoca Tate e Anderson falando-lhes da jovem Lina, perguntando ao velho garimpeiro por que este nunca se casara. Tate ironicamente responde que nunca precisou porque sempre foi muito atraente. E o sarcasmo prossegue quando Vandergroat diz a Anderson que para o tenente falar de suas conquistas amorosas precisaria de muito tempo. Vandergroat joga com a cobiça e com o desejo que Lina desperta. O bandido alicia o velho garimpeiro com a promessa de lhe indicar onde há ouro. E após empreender uma fuga com a ajuda de Tate mata-o impiedosamente, e para horror de Lina diverte-se exibindo sua pontaria nas botas do garimpeiro morto.

Janet Leigh e James Stewart.
Discutível final feliz - A presença de Lina Patch na companhia de Ben Vandergroat é explicada pela inocência da jovem que ficara órfã e que acredita que o bandido, ex-amigo de seu pai, a levará à Califórnia. Desajustada entre os quatro homens Lina acaba sendo a forma de redenção de Howard Kemp. Ambos, Lina e Kemp, almejam iniciar uma nova vida, objetivos comuns seguindo caminhos diferentes. Alvejado na perna direita durante um confronto com os índios Blackfeet, é Lina quem se desvela em cuidados para com Kemp que em seu delírio a chama pelo nome da ex-amada. Ao final, quando o desesperado Kemp arrasta o corpo inerte de Vandergroat pois a recompensa diz ‘Vivo ou Morto’, Lina provoca o que resta de humanidade em Kemp. O suficiente para que “O Preço de um Homem” tenha um possível final feliz, final incondizente com a crueza dos retratos expostos dos quatro homens nos anteriores 90 minutos do filme. Esse final de certa forma destoa o conjunto de “O Preço de um Homem”, ainda que o que o filme já tivesse mostrado o que pretendia. É certo que a recuperação de Howard Kemp após ter levado um tiro na perna é rápida demais. E suficiente para que Kemp numa luta com o muito mais jovem tenente Anderson, abata o adversário inconvincentemente, prostrando-o desmaiado com um único chute. Esse mesmo Anderson na parte inicial do filme debocha do ainda fisicamente perfeito Kemp quando este não consegue escalar uma montanha. Mas a superação física de Kemp tem a ver com a maneira com que Mann vê a paisagem natural e os homens que nela vivem.

Acima o choro incontido de Kemp.
Engrandecimento artístico - Filmado possivelmente todo em locações, e a dúvida se deve à sequência da caverna, o deslumbrante cenário da região de Durango, no Colorado, aos pés das Montanhas Rochosas, é mais que perfeito para Anthony Mann narrar sua história. Para melhor se conhecer a preferência do diretor pelas locações inóspitas vale transcrever aqui uma reflexão do próprio Mann por ocasião de uma entrevista dada em 1967 a Paul Mayersberg para a série da BBC “The Movies”. Disse Mann: “Um western é algo maravilhoso porque você pega um grupo de atores acostumados a atuar em palcos ou em estúdios fechados e você os leva para lugares onde eles se defrontam com os elementos naturais. Esses elementos os transformarão em atores muito melhores. Eles terão que gritar contra o vento, terão que sofrer, terão que escalar montanhas”. Esse raciocínio foi que levou Anthony Mann a obter tantos êxitos com seus westerns filmados em cenários amplos, planícies vastas e, quase sempre, montanhas a serem escaladas até o topo. James Stewart renasceu como ator nos cenários naturais de Anthony Mann; Stewart se embruteceu e paradoxalmente se humanizou dessa forma. John ‘Scottie’ Ferguson, seu mais famoso personagem em “Um Corpo que Cai” (Vertigo), se aproxima indiscutivelmente do Howard Kemp de “O Preço de um Homem”.

Jesse Tate (Millard Mitchell) carinhoso com
sua mula 'Poke'. Abaixo Jesse morto.
Trio de estupendos atores - Com apenas cinco personagens, este western de Anthony Mann entremeia brilhantemente o estudo psicológico dos personagens com as cenas de ação. James Stewart, como foi dito, alcança um dos pontos mais altos de sua carreira como ator, ampliando ao limite possível o ódio demonstrado em “Winchester 73” e que o leva a matar seu próprio irmão. O limite em “O Preço de um Homem” é a histeria impensável para um ator como Stewart. E essa perfeita atuação ocorre mesmo com a incômoda e desafiadora presença em cena de um ator como Robert Ryan criando um inesquecível vilão. Millard Mitchell enriquece sua galeria de excelentes personagens com o velho garimpeiro cuja única amizade verdadeira é sua mula ‘Poke’. Ralph Meeker faz o que pode para se sobressair diante desse trio de estupendos atores. Janet Leigh, ainda presa por contrato à Metro Goldwyn Mayer, não foi a melhor escolha para interpretar a jovem, carregando seu personagem com uma inocência inapropriada. E também porque a simpática Janet Leigh tinha limites estreitos como atriz dramática.

Os cinco mil dólares retirados da correnteza.
Western-noir em Technicolor - O desfecho de “O Preço de um Homem” é memorável por sua força dramática e pelas condições às quais os atores foram expostos dando realismo à sequência do resgate do corpo de Vandergroat. A cinematografia de William Mellor é soberba e a trilha musical composta pelo russo Bronislau Kaper possui nuances que remetem ao estilo que consagraria Bernard Hermann nos thrillers de Hitchcock. Mal recebido pelo público e praticamente ignorado pela crítica quando de seu lançamento, “O Preço de um Homem” foi elevado três anos depois à condição de primoroso western pelo crítico francês André Bazin. Anos depois Leonard Maltin escreveu que “O Preço de um Homem” é um dos melhores westerns de todos os tempos e Phil Hardy considera este filme de Anthony Mann “um western extraordinário”. Já se perguntou que espécie de vencedores são os heróis de Anthony Mann. Certamente heróis ambíguos e contraditórios e há muito da ambiguidade do personagem Howard Kemp em Ethan Edwards (John Wayne) em “Rastros de Ódio”. Assim como seriam muitos dos personagens de Sam Peckinpah e de Sergio Leone criados na década seguinte. “O Preço de um Homem” é a obra-prima de Anthony Mann, um western-noir em Technicolor que resultou em um dos grandes faroestes da história do cinema.

A espora no rosto de Ben Vandergroat (Robert Ryan); abaixo Howard Kemp
(Stewart) procura enterrar seu passado enquanto Lina (Janet) o espera.

Tenente Anderson (Ralph Meeker) arrisca a vida na correnteza para
resgatar o corpo de Ben Vandergroat (Robert Ryan).

Pôster em diversas línguas com títulos alterados: "A Espora Nua" (Inglês) -
"A Isca" (Francês) - "A Espora Nua" (Italiano) - "Colorado Jim" (Espanhol) -
"Recompensa do Xerife" (Romeno) - "A Violência Nua" (Alemão).

Janet Leigh em Durango, no Colorado, nos intervalos das filmagens.

5 comentários:

  1. O melhor western de todos os tempos. Já o vi umas 10 vezes.

    http://ofalcaomaltes.com/

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    1. Olá, Nahud
      Pode até não ser o melhor de todos os tempos, mas é seguramente o melhor western de Anthony Mann, o que não é pouco e já o coloca entre os melhores de todos os tempos.
      Um abraço do Darci

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  2. Uma preciosidade feita por Anthony Mann . Belíssimas imagens,história bem amarrada e convincente ! Interpretação de Stewart e Ryan foram notáveis !!
    Um dos meus favoritos !

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    1. Olá, Lau Shane
      O Preço de um Homem é também um dos meus favoritos.
      Darci

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  3. Conheci-o em 2005, e revi-o em 2009, 2013 e hoje!
    Muito bom, mas na memória era melhor!
    Ainda sim, lindas locações, trilha muito muito boa, e bem dirigido, claro, Mann era talentoso à beça! O elenco é alto nível, mas ainda sim, nessa revisão me faltou algo!

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