14 de março de 2013

SEM LEI E SEM ALMA (Gunfight at the OK Corral) – 2.ª Parte – A FORMAÇÃO DO ELENCO


Depois de assistir Burt Lancaster em “Vera Cruz” e “O Último Bravo”, westerns que renderam excelentes bilheterias, o produtor Hal B. Wallis lembrou que Lancaster ainda lhe devia dois filmes. No início de sua carreira Lancaster havia assinado um contrato com Wallis e agora vivia a curiosa situação de ter sua própria e bem sucedida produtora e ter que terminar de cumprir o contrato com o produtor ainda seu ‘patrão’ que lhe pagava 20 mil dólares por filme. Hal B. Wallis mandou a Lancaster um roteiro do western que iria produzir em 1956, intitulado “Gunfight at the OK Corral” avisando que ele seria Wyatt Earp. Burt não gostou do que leu e avisou a Wallis que não iria fazer outro western pois havia terminado de atuar e dirigir “Homem até o Fim”. Wallis iniciou então os contatos para contratar um outro ‘Wyatt Earp’ para substituir Burt Lancaster.


Burt Lancaster e Katharine Hepburn em
"Lágrimas do Céu".
Lancaster se torna Wyatt Earp - Houve negociações preliminares entre Wallis e diversos atores tidos como tops em Hollywood, entre eles Gary Cooper, John Wayne, Gregory Peck, Charlton Heston e Kirk Douglas. Certo dia Burt Lancaster ficou sabendo que Wallis havia adquirido os direitos da peça “The Rainmaker”, que Burt havia assistido na Broadway, imaginando que um dia poderia interpretar ‘Bill Starbuck’, o principal personagem da peça, no cinema. Conta Wallis que Lancaster ligou para ele no meio de uma madrugada perguntando se ele havia contratado alguém para ser ‘Wyatt Earp’. Como o produtor ainda não havia fechado com nenhum ator, Lancaster contrapropôs: “Eu atuo no seu faroeste, mas quero também ser ‘Bill Starbuck’ no cinema”. O produtor aceitou e com esse acerto Lancaster encerraria seu contrato com Wallis atuando em “Sem Lei e Sem Alma” e em “Lágrimas do Céu” (The Rainmaker).


Kirk e Burt, inseparáveis mesmo durante
os intervalos de filmagem. 
Kirk Douglas é Doc Holliday - O problema seguinte de Wallis era encontrar o ‘Doc Holliday’ certo. O nome que o produtor tinha em mente era o de Humphrey Bogart, que não aceitou. Wallis procurou então Van Heflin, Jack Palance, Ben Gazarra, José Ferrer, Richard Widmark e até Frank Sinatra. Quando, porém, Kirk Douglas soube que Burt Lancaster seria o ‘Wyatt Earp’, entrou em contato com Wallis e disse que aceitava ser ‘Doc Holliday’ para trabalhar ao lado de Burt Lancaster. Wallis ofereceu 200 mil dólares a Kirk Douglas que aceitou esse salário relativamente baixo diante de sua crescente popularidade conquistada com os seguidos sucessos de bilheteria que vinha obtendo,  como “20 Mil Léguas Submarinas”, “Ulisses” e “Homem Sem Rumo”. Sem falar no sucesso artístico de Douglas com “Assim Estava Escrito” e “Sede de Viver”, que lhe renderam indicações ao Oscar de Melhor Ator. Ao contrário do que se pensa, Burt e Kirk não eram amigos, apesar de terem atuado juntos em “Estranha Fascinação”, em 1948, filme produzido por Wallis, como foi dito na primeira parte desta postagem. Burt e Kirk tornaram-se amigos durante as filmagens de “Gunfight at the OK Corral”, quando passavam horas conversando à noite no hotel em que a equipe se hospedou em Tucson. Burt e Kirk conversavam tão longamente que o próprio Wallis chegou a perguntar a eles o que tanto eles tinham para conversar. E de fato, além da rivalidade como astros do cinema, havia mais diferenças que semelhanças entre os dois atores. Ambos eram nascidos em bairros pobres de Nova York, mas Burt era WASP (branco protestante anglo-saxão), enquanto Kirk, cujo nome verdadeiro é Issur Danielovitch Demsky era judeu, filho de imigrantes russos. Mas nas conversas que invadiam as madrugadas, Burt e Kirk certamente falavam de seus projetos futuros como produtores de filmes como “Glória feita de Sangue”, “A Embriaguez do Sucesso”, “Os Vikings” e o grande sonho de Douglas que era filmar a vida do escravo Spartacus. Como produtor, Lancaster tinha muito a ensinar a Kirk Douglas depois de produzir sucessos como “Marty”, “Trapézio” e os faroestes “Vera Cruz” e “O Último Bravo”. E Lancaster deve ter dito a Douglas para evitar a direção, isto depois de seu fracasso com “Homem até o Fim”.


Jo Van Fleet em cenas de
'Sem Lei e Sem Alma", com Kirk Douglas.
A masoquista Jo Van Fleet - Para o principal papel feminino Wallis queria Barbara Stanwyck que no entanto recusou o convite. Barbara entendia que, aos 48 anos, ainda não era o momento de aceitar papéis de coadjuvante, mesmo que fosse um papel atraente como o de ‘Kate Fisher’. Foi então contratada a nada bonita mas enormemente talentosa Jo Van Fleet, que havia ganho um prêmio Oscar no ano anterior por sua interpretação como a mãe prostituta de James Dean em “Vidas Amargas”, bem como havia ganho o prêmio ‘Tony’ de Melhor Atriz de Teatro. O personagem de Jo Van Fleet seria o de ‘Kate Fisher’, mais conhecida como ‘Big Nose Kate Elder’, apelido da húngara Mary Katharine Horony Cummings. Obviamente o ‘Big Nose’ era devido ao nariz bem dimensionado que Kate possuía e o ‘Elder’ por ter vivido até os 90 anos de idade num tempo em que a dureza da vida no Velho Oeste mal permitia que se chegasse aos 60 anos. Jo Van Fleet que era atriz com larga experiência na Broadway e ainda tendo lecionado no Actors Studio, surpreendeu o diretor John Sturges e principalmente Kirk Douglas com o realismo que pedia nas cenas mais fortes. Quando Doc Holliday atira uma faca em Kate, Jo Van Fleet exigiu que a faca passasse perigosamente bem próximo a seu rosto. Pior foi com Kirk Douglas que antes de cada cena em que Kate e Doc discutiam – e discutiam sempre – Jo pedia a Kirk que a esbofeteasse com toda força. A princípio Kirk não entendeu e deu um tapa em Jo que pediu a ele que lhe batesse no rosto com mais força. Na quarta ou quinta tentativa o tapa de Kirk fez a cabeça de Jo Van Fleet girar e então ela se deu por satisfeita. Kirk contou o fato a Burt que só acreditou quando foi ao set de filmagem e constatou a repetição do masoquismo de Jo Van Fleet, forma de se preparar para as cenas. Assistindo ao filme percebe-se que essas cenas entre Jo e Kirk estão entre as melhores do filme.


A linda Rhonda Fleming com Burt Lancaster.
O desprezado personagem de Rhonda Fleming - Quem não ficou nem um pouco satisfeita com seu trabalho em “Gunfight at the OK Corral” foi a linda Rhonda Fleming. Contratada certamente para que o filme fosse enfeitado por seu rosto bonito de mulher, Rhonda percebeu que John Sturges não lhe dava praticamente nenhuma orientação para as cenas nas quais participava. Rhonda chegou a reclamar com o diretor, dizendo a ele inclusive que sequer close-ups ela recebia naquele filme. Sturges a tranquilizou respondendo que Rhonda teria ainda cenas melhores e mais importantes no filme. Mas Rhonda percebeu que naquele filme o verdadeiro romance não era entre Laura Denbow (seu personagem) e Wyatt Earp, mas sim entre Wyatt Earp e Doc Holliday e que seu personagem, uma elegante jogadora, era praticamente uma intrusa no filme. A revista ‘Time’ comentou sarcasticamente que, a cada vez que Wyatt Earp se afastava de Doc Holliday para se encontrar com Laura Denbow, parecia que o Marshal se encaminhava para a cadeira elétrica. E com pouco mais da metade do filme o personagem de Rhonda Fleming simplesmente desaparece pois seu noivo Wyatt Earp decide ir para Tombstone atendendo ao chamado do irmão. No meio do caminho entre Dodge City e Tombstone, o Marshal encontra quem mesmo? O amigo Doc Holliday.


Wyatt Earp e Doc Cassidy,
uma grande amizade.
A amizade entre Earp e Holliday - Burt Lancaster afirmou que “Gunfight at the OK Corral” era um faroeste sobre “duas bichas pré-freudianas”. Disse ainda que Wyatt Earp e Doc Holliday “se atraíam pois estavam apaixonados um pelo outro e não sabiam como expressar o que sentiam, então ficavam um olhando para o outro sem falar quase nada, mas sabiam que se amavam”. Um dos temores de Hal B. Wallis era que os dois atores tentassem fazer alterações no roteiro. Conhecendo-os bem, Wallis fez várias marcas no roteiro entregue a John Sturges, marcas essas que indicavam que naqueles trechos Douglas e Lancaster deveriam ser consultados. Por outro lado Wallis prometera a Leon Uris que não haveria nenhuma alteração no roteiro original. Nem Burt e nem Kirk promoveram alterações no roteiro, aceitando a latente relação homossexual entre Earp e Holliday. Segundo John Sturges, apenas ele, diretor, inseriu dois trechos diferentes no roteiro, um no último diálogo entre Burt e Kirk e também a fala de Betty Earp (Joan Camden). Quando Leon Uris viu o filme já finalizado, aceitou as inserções de Sturges, dizendo porém que elas eram muito ruins e completando: “Ainda bem que John Sturges escolheu como profissão ser diretor e não escritor”.


Lee Van Cleef e Jack Elam.
Grandes vilões - Um grupo de excelentes coadjuvantes compõe o elenco de “Sem Lei e Sem Alma”, especialmente os muitos foras-da-lei. O timaço de bandidões tem John Ireland, Frank Faylen, Lyle Bettger, Jack Elam, Lee Van Cleef e Ted de Corsia. Sem contar o jovem Dennis Hopper que completou 20 anos durante as filmagens. Outros jovens do filme são Earl Holliman e Martin Milner, estes do lado Lei. Completam o elenco em papéis menores DeForest Kelley, Olive Carey, John Hudson, George Matthews e Whit Bissell. John Ireland, que atuou em “Paixão dos Fortes”, comparou os diretores John Ford e John Sturges, dizendo que ambos contavam suas histórias com a câmara . Ireland completou dizendo que a maior diferença entre eles era que enquanto Ford era um bem acabado ‘filho da puta’ (son-of-a-bitch), Sturges tratava seus atores respeitosamente, dizendo a eles em poucos minutos tudo que ele queria que fosse feito.


Dennis Hopper, Olive Carey e Burt Lancaster.
Lancaster ajudando Dennis Hopper - O jovem ator Dennis Hopper havia estudado no Actors Studio com seu amigo James Dean e foi o mais representativo ator da geração rebelde dos anos 50 mostrada em “Juventude Transviada”. Hopper contracenou com James Dean também em “Assim Caminha a Humanidade”, sendo depois escalado para um pequeno papel como Billy Clanton em “Sem Lei e Sem Alma”. Nesse western Hopper acabou tendo mais destaque que o próprio Ike Clanton, tendo direito a morrer em uma sequência da qual participaram Burt Lancaster e Kirk Douglas. A explicação para esse destaque é simples: Burt Lancaster praticamente adotou o jovem Hopper, conversando muito com ele e orientando-o sobre como desenvolver seu personagem. Sempre que Billy Clanton entra em cena aparece também Wyatt Earp, entendendo e tentando conter a rebeldia do jovem atormentado com pretensões a pistoleiro. Hopper atuaria mais tarde em “Os Filhos de Katie Elder”, “Bravura Indômita” e “Kid Blue não Nasceu para a Forca”, consagrando-se como um dos mais sádicos assassinos do cinema em “veludo Azul”.

(3.ª e última parte de "Sem Lei e Sem Alma" na próxima postagem)

Um comentário:

  1. Darci,
    O DVD da Paramount, que tenho, é fiel ao formato original (widescreen), com legendas perfeitas.

    Esse filme, quando passou na minha terra --Oliveira, MG-- fez um sucesso estrondoso, mas eu não consegui assistir porque tinha censura de 14 ou 18 anos (que coisa, heim?).

    A maioria do pessoal da época (até onde eu sei) não colocou maldade na amizade do Burt com o Kirk, porque era comum naquele tempo o herói ter um companheiro (que lá a gente chamava simplesmente de "ajudante"): Batman x Robin, Zorro x Tonto, Superman x Jimmy Olsen, Mandrake x Lothar etc. Então, todo mundo via o Doc Holliday como o ajudante do Wyatt Earp. Outros tempos, outros costumes. Não tenho ainda certeza se ganhamos ou perdemos com a perda da inocência do mundo atual...

    Só vi o filme anos depois, numa reprise em Belo Horizonte, onde morava na época. Depois revi em DVD e confesso que fiquei meio decepcionado. Gosto muito mais de um outro filme de John Sturges, mas qual é ele eu só vou revelar quando vc. publicar a última parte dessa matéria, ok?

    Um abraço
    Tadeu

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