13 de agosto de 2012

CINE SAUDADE - PEQUENAS MOCINHAS E BANDIDAS


Felizes as crianças que cresceram numa cidade grande chamada São Paulo, até o fim dos anos 50. Nesse tempo a população ainda não chegara aos três milhões de habitantes e na maior parte dos bairros da periferia as ruas eram de terra. Meninos e meninas brincavam nas ruas sem que isso trouxesse preocupação para os pais, e com a menina Janete não foi diferente. Janete Felix Palma nasceu numa casa num daqueles bairros cantados por Adoniran Barbosa, a Vila Esperança. Ali morou apenas quatro meses pois seu pai comprou uma casa em Cangaíba, bairro vizinho à Penha, também na Zona Leste da cidade. A família era composta por seu Palma, a esposa, o bebê Janete e duas filhas mais velhas que Janete que era temporã. Com a caçula o casal Palma fechou a conta, feliz com as três meninas.


A pequena Janete e ao fundo o bairro Cangaíba, na Zona Leste de São Paulo.

O CINE-PROJETOR BARLAM - Como todas as outras crianças, Janete brincava, nas ruas, de barra-manteiga (na fuça da nega), esconde-esconde, cabra-cega, pega-pega, passa-anel, lenço-atrás, amarelinha, queimada, duro ou mole, pula-carniça e outros. Mas Janete também jogava bolinha de gude, jogo de botão e bafo, modalidades em que os meninos eram craques. Seu Palma era marceneiro e construiu um enorme caminhão de brinquedo no qual cabia uma criança. As irmãs se revezavam dentro do cock-pit, enquanto as outras duas puxavam e empurravam numa ‘vula’ de dar frio na barriga. As meninas ouviam falar em cinema mas nem imaginavam o que fosse isso, até que um dia seu Palma trouxe para casa um brinquedo novo. Era um tipo de projetor com uma lâmpada daquelas comuns dentro e com uma manivela que movimentava pequenas bobinas projetando... filmes. A marca da pequena engenhoca era “Cine-Projetor Infantil Barlam” e os filmes eram desenhos em papel manteiga que projetados pela luz e rodados pela manivela criavam a impressão de movimento. Cinema puro. Mas havia um problema: como esquentava aquele projetor... Tanto que após um filme ele devia ser desligado até a lâmpada resfriar. As crianças da vizinhança juntavam-se na casa de Janete para assistir filmes, comer pipocas e tomar guaraná. Era uma verdadeira festa. Mas o que era mesmo o tal de cinema, de que tanto as meninas ouviam falar?

Cineminha em casa só para quem possuía um Cine-Projetor Barlam;
abaixo a filmoteca composta de desenhos impressos em papel manteiga
enrolados em pequenas bobinas. Era um show com muita alegria.

Após seis semanas num cinema do
centro "Marcelino" chegou ao
bairro onde Janete morava.
NO CINEMA COM “MARCELINO, PÃO E VINHO” - Quando Janete tinha seis anos, a família Palma mudou-se para uma casa no bairro do Belém, numa daquelas vilas que mais ainda aproximam as pessoas. A vila ficava próxima da Celso Garcia, avenida que serpenteava pela Zona Leste, indo do Brás até o alto da Penha. E o que não faltava na Avenida Celso Garcia era cinema. Havia os cines Universo, Júpiter, Aladim, Fontana, Íris, São Jorge, São Luís, Brás-Politeama e Roxy, sem falar no Piratininga, São Geraldo, Penha Palace, Penha Príncipe, Savoy e outros em ruas próximas. Quase todas as crianças do Grupo Escolar Amadeu Amaral no Largo São José do Belém, onde Janete estudava, já haviam ido ao cinema e o desejo de conhecer o que era aquilo aumentava a cada dia. Até que num dia do mês de outubro de 1957, seu Palma anunciou que levaria as filhas ao Cine Júpiter que estava exibindo “Marcelino, Pão e Vinho”. Era o filme mais comentado da cidade, tanto que permaneceu 15 semanas em cartaz, virando até álbum de figurinhas. Foi a primeira vez que Janete teve a emoção de ver aquelas pessoas enormes na tela e também a primeira vez que chorou ao ver o drama de Marcelino interpretado pelo menino Pablito Calvo. Dessa tarde em diante o cinema se tornou uma constante na vida da menina Janete.

"Marcelino, Pão e Vinho" em primeiro lugar na Bolsa de Cinema
da Folha da Manhã e 15 semanas em cartaz.

Gibi 'Zorro' de agosto de 1957.
BRINCANDO DE MOCINHO E BANDIDO -  Além dos gibis que circulavam entre as crianças, trazendo heróis como Fantasma, Capitão Marvel, Mandrake e mocinhos do Velho Oeste como Roy Rogers, Rocky Lane, Cavaleiro Negro e Zorro o cinema criava no imaginário das crianças a vontade de ser um deles. E as brincadeiras pega-pega, cabra-cega e queimada davam, por vezes, lugar às brincadeiras de mocinho e bandido, mais comuns aos meninos. Mas ali naquela vila do Belém a menina Janete e suas amiguinhas podiam ser vistas montando seus Triggers e Silvers de cabo de vassouras. Só quem não gostava era a mãe de Janete que quando pegava uma vassoura para varrer a casa percebia que a vassoura havia varrido muito chão de terra e pedras. A criatividade de Janete desconhecia limites e para imitar os mocinhos ela confeccionava até máscara de Zorro. Para os índios, geralmente a vizinha Mariana, uma faixa na cabeça que a tornava uma pequena apache chiricahua. Certeira nos tiros dados com um galho de árvore em formato de revólver, Janete por vezes era também alvejada no braço. Nada que uma improvisada tipóia feita com um pano não resolvesse para que ela voltasse à destemida perseguição contra o bandido que era também uma menina.

NA VASTIDÃO DA IMAGINAÇÃO - Janete cresceu, foi para o Ginásio Estadual Padre Manoel da Nóbrega que ficava na Vila Maria Zélia e não deixou de assistir faroestes com seu Palma na televisão. Testemunhou, ainda adolescente segurando vela no cinema para a irmã, a invasão de Ringos, Djangos e Trinitys com dólares de todos os tipos. Viu também com tristeza adulta desaparecerem John Wayne, Randolph Scott e Audie Murphy. Animou-se um pouco com Kevin Costner, Kurt Russell e um envelhecido Clint Eastwood que atuaram em westerns no final do século. Mas o que dói mesmo na alma de Janete é não mais poder brincar de mocinho e bandido na vastidão daquela pequena vila de sua infância.

6 comentários:

  1. Grande Darci!
    Esse texto me fez lembrar um pouco das tantas estripulias que fazíamos quando crianças, como um rústico cinema, que mais lembrava teatro de sombras. Mas a diversão era garantida. E até um circo que literalmente pegou fogo.

    Abraço!

    Vinícius Lemarc

    ResponderExcluir
  2. Olá, Vinicius
    Como no meu tempo de criança não havia grandes perigos nas ruas, nós mesmo os criávamos. Numa travessura botei fogo no colchão que ainda era de palha...
    Um abraço - Darci

    ResponderExcluir
  3. Uma infancia dourada e muito paralela à de quase todas as crianças que viveram àquela época; brincadeiras onde meninos e meninas se distraiam juntos e sempre todos a pisar em ruas de barro batido.

    Aliás, na casa onde morei, não apenas as ruas eram de barro batido, como a cozinha da casa de meu avô materno (onde vivi longos anos de minha infancia) era também chão de barro batido.

    Marcelino Pão e Vinho não foi o primeiro filme que vi, mas não posso negar que ele teve, tal qual que como para Janete, grande influencia na minha vida e no meu mundo dentro da sétima arte.
    Recordo a fila imensa que precisei pegar para ver esta fita! E as filas eram compostas, predominantemente, por crianças, conduzidas quase sempre por seus pais.

    Tipico filme para as crianças da época e, creio, se fosse reprisado hoje, não faria menor sucesso, pois é uma fita linda e que a todos encantou e ainda encantaria.

    Que continue sendo muito feliz nossa querida Janete. Que siga também assistindo e amando faroestes, e que faça estar sempre viva e muito presente na memória aqueles belos e doces tempos de infancia.
    jurandir_lima@bol.com.br

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Jurandir!

      Obrigada pela tua carinhosa mensagem.
      Realmente, eu tive uma infância ótima brincando de Zorro no chão de terra batida.
      Um grande abraço!

      Excluir
  4. Vinicius e Darci;

    Circo, Lemarc, circo! Que beleza, heim? Eles eram constantes naqueles bons tempos, com aqueles teatrinhos e os palhaços nos matando de rir.
    Bacana e muito presente sua lembrança desta distração, que parece, deixaram falecer, pelo menos como nós conhecemos!

    Colchão de palha, amigo Darci! Que bela memoria de tempos de infancia, onde os de minha casa também eram assim.

    Este tipo de estrepolia que fizeste, era algo muito comum e corriqueiro, já que tinhamos mais liberdade, os perigos externos quase não existiam, e nossos pais quase nunca nos proibiam de brincarmos com os amigos e vizinhos.

    Cabeça quebrada, escoriações, cotovelos arranhados, joelhos espoliados, carrapichos grudados nas roupas e rostos e corpos suados de tantas estepolias.
    Isso sem falar nas constantes e inevitáveis fraturas de braços, pernas e costelas.

    E era assim, suados e muitas vezes ainda arfantes das correrias, que iamos para a cama, nos horários pelos pais estipulados e sem ninguém nunca ter morrido ou adoecido por isso.
    Um grande abraço para os dois.
    jurandir_lima@bol.com.br

    ResponderExcluir
  5. Jurandir, o blog aguarda texto seu para o Cine Saudade, uma vez que sua infância e adolescência têm muito a ver com cinema. Darci

    ResponderExcluir