Tonino Valerii iniciou sua carreira como roteirista em dois filmes de terror produzidos na Itália e em 1964 teve a sorte de se tornar assistente de direção de Sergio Leone em “Por um Punhado de Dólares” (Per un Pugno di Dollari) e em “Por uns Dólares a Mais” (Per Qualche Dollaro in Più). Neste último Valerii colaborou com Leone no roteiro embora não tenha sido creditado. Depoís desse precioso aprendizado, Valerii, em 1966, dirigiu seu primeiro western que foi “Pelo Prazer de Matar” (Per il Gusto de Uccidere), estrelado por Craig Hill, ator norte-americano que se radicou na Europa atuando em diversos faroestes. Em “Pelo Prazer de Matar” Valerii foi também roteirista e no ano seguinte, 1967, pode-se dizer que tirou a sorte grande ao ser escolhido para dirigir dois dos atores em maior evidência nos westerns-spaghetti: o primeiro, Giuliano Gemma, já chamado de ‘The King of the Italian Western’ depois do sucesso alcançado com a série ‘Ringo’ e com “O Dólar Furado”. O outro ator era Lee Van Cleef que passou a ser muito requisitado após sua criação como ‘Coronel Douglas Mortimer’ em “Por uns Dólares a Mais”, seguido do sucesso que foi “Três Homens em Conflito” (Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo), pelas mãos de Leone. Dirigir Gemma e Van Cleef poderia parecer tarefa difícil para um diretor com pouca experiência como Valerii, mas “O Dia da Ira” comprovou que aos 33 anos Valerii tinha sim talento como diretor.
O roteiro escrito a três mãos por Valerii, Ernesto Gastaldi e Renzo Genta se baseia no por demais batido tema da vingança e paralelamente conta como Frank Talby (Lee Van Cleef), recém-chegado à cidade de Clifton, adota o jovem Scott (Giuliano Gemma) como seu protegido, a quem passa a dar lições de como sobreviver ante a violência do Velho Oeste. Scott é um excluído da sociedade de Clifton, onde trabalha como varredor de rua e lixeiro recolhendo latrinas repletas de escarros e dejetos. Seus únicos amigos são Murph Allan Short (Walter Rilla), ex-xerife e agora um idoso relegado a cuidar dos cavalos em um estábulo, e Blind Bill (José Calvo) um cego maltrapilho que vive nas ruas. Considerado filho bastardo que nem sobrenome possui, Talby passa a chamá-lo pejorativamente de Scott Mary uma vez que a mãe do rapaz se chamava Mary. O que trouxe Talby a Clifton, após cumprir dez anos de prisão, foi travar contato com alguns membros da quadrilha que assaltou um trem. Talby procura por Wild Jack (Al Mulock), ex-membro da quadrilha e que o traíra e a quem Talby mata, não sem antes extrair de Wild Jack os nomes dos demais participantes do roubo ao trem. São eles o banqueiro Turner (Ennio Balbo), o juiz Cutcher (Lukas Ammann) e Abel Murray (Andrea Bosic), dono do saloon de Clifton, todos os três figuras proeminentes da cidade. Frank Talby chantageia o banqueiro e o dono do saloon, além de pressionar o juiz e se tornar tão respeitado em Clifton quanto os três que o traíram. Ao ganhar a confiança de Talby, Scott Mary também passa a ser respeitado, até porque é exímio atirador. Murph Allan Short aconselha Scott a se afastar de Talby e o juiz Cutcher tenta aliciar Scott através da amizade que ele tem com o velho Murph e também com os encantos de sua filha Eilleen (Anna Orso), de quem Scott sempre gostou. Nomeado novo xerife de Clifton, Murph tenta deter o cada vez mais ambicioso Talby e este mata Murph, o que provoca a ira de Scott que, usando das lições aprendidas com Talby, duela com seu ex-mestre e protetor, matando-o.
Scott Mary (Gemma) quando ainda não era respeitado em Clifton; treinando com um coldre amarrado com uma corda e 'disparando' um revólver de madeira. |
“O Dia da Ira” é um faroeste que em pouco se diferencia do estilo clássico dos faroestes norte-americanos e isso faz dele um filme agradável de se assistir, mais ainda para aqueles que são resistentes à vertente italiana dos faroestes. Se o enredo é simples, as muitas sequências de ação valorizam sobremaneira o filme de Tonino Valerii. Este diretor, quase sempre acusado de imitar Sergio Leone demonstra ter assimilado e muito da maneira de filmar de Hollywood. Valerii mescla os momentos de ação com um ritmo mais lento sem jamais ser cansativo. A previsibilidade tão comum nas histórias do Velho Oeste levadas à tela é evitada pelo roteiro, especialmente no confronto final, o dia em que explode a ira, quando até então ficamos sem saber para qual lado penderá Scott Mary, o herói de “O Dia da Ira”. Se algo remete aos clássicos de Sergio Leone são os confrontos cuidadosamente coreografados sem que por isso caiam na caricatura. Tonino Valerii é mais lembrado por “Meu Nome é Ninguém” (Il Mio Nome è Nessuno), produzido por Sergio Leone que teria se intrometido nas filmagens dirigindo diversas sequências. Porém “O Dia da Ira” é um excelente trabalho que nada fica a dever a “Meu Nome é Ninguém”, a não ser a total ausência de comicidade, provavelmente evitada com rigor pelo diretor. Como de hábito, a recuperação de ferimentos a bala são rápidas demais e Scott Mary toma surras violentas cujas marcas desaparecem como que por encanto.
Frank Talby (Lee Van Cleef) e Scott Mary (Giuliano Gemma) em plena ação |
A amizade entre Frank Talby e Scott Mary lembra como o cowboy Dempsey Rae (Kirk Douglas) transformou o inocente, atrapalhado e ridicularizado Jeff Jimson (William Campbell) em um pistoleiro em “Homem Sem Rumo” (Man Without a Star), apenas que em “O Dia da Ira” o processo é mais elaborado e doloroso para Scott Mary que a cada lição é humilhado até fisicamente por seu mestre. Além de Talby, Scott recebe também lições do amigo Murph, que foi contemporâneo de Doc Holliday. Se da parte de Talby o pupilo Scott aprende lições em forma de truques de como sobreviver enfrentando homens maus, sendo enfatizada a lição “jamais confie em ninguém”, o velho Murph ensina a Scott técnicas de como ser mais rápido e nisso este western de Tonino Valerii é bastante interessante. Murph lembra que o cano do Colt de Talby é duas polegadas menor pois foi serrado perdendo inclusive a mira, o que facilita o saque rápido. E quando Talby compra um Colt para Scott, escolhe aquele com mira e cano normal antevendo que um dia terá que enfrentar o aluno. Antes de morrer e do tiroteio final em que Scott enfrenta Talby, Murph o avisa que lhe legara o revólver que pertenceu a Doc Holliday, arma que mantivera escondida por anos no estábulo. Não bastasse o roteiro citar essas questões técnicas, há ainda o confronto inusitado entre Frank Talby e Owen White (Benito Stefanelli), contratado pelo trio Turner, Cutcher e Murray para matar Talby. White desce de uma diligência lembrando bastante o Coronel Douglas Mortimer de “Por uns Dólares a Mais”, especialista em armas como Owen White. O duelo travado entre ambos é insólito pois ambos devem carregar suas espingardas e dispará-las montados em seus cavalos que correm um em direção ao outro. E este western possibilita a Lee Van Cleef e a Giuliano Gemma (este ainda mais) a demonstração de destreza com as armas no enfrentamento os adversários. Esse exibicionismo sempre fez a alegria dos espectadores de faroestes e Valerii sabia bem disso.
Frank Talby (Lee Van Cleef) no estranho duelo contra Owen (Benito Stefanelli) |
No final dos anos 60 os cinco maiores astros do cinema europeu eram Marcello Mastroianni, Alain Delon, Jean-Paul Belmondo, Giuliano Gemma e Lee Van Cleef, sendo que as bilheterias dos filmes destes dois últimos superavam as dos demais juntos. Isso se devia aos westerns-spaghetti terem se tornado popularíssimos na Europa (aqui no Brasil também) e Gemma e Van Cleef serem os expoentes do gênero. Lee Van Cleef não fazia esforço para atuar pois era sempre ele mesmo e sua impressionante persona impunha respeito em todas os momentos em que surgia em cena. Sua marca registrada, além do olhar com que fulminava tanto quanto com suas armas, era o indefectível cachimbo que dava a ele um ar enigmático que desconcertava o oponente. Giuliano Gemma, além da boa aparência era capaz de belas acrobacias que muito valorizavam suas sequências. E os dois se completaram, o mestre e o discípulo neste “O dia da Ira”. O elenco de apoio tem destaque para Lukas Ammann e Andrea Bosic. Yvone Samson, que desponta nos créditos iniciais pouco aparece no filme, assim como as duas demais mulheres às quais Scott Mary lança olhares interesseiros: Anna Orso (Eilleen), a quem Scott chega a beijar e Christa Linder (Gwen). O enorme time de vilões tem destaque para Al Mulock em seu último filme antes do suicídio ocorrido no ano seguinte e Benito Stefanelli, marcante como o atirador contratado para matar. Walter Rilla foi um veterano ator alemão que atuou sempre no cinema europeu. Romano Puppo, o constante dublê de Lee Van Cleef tem pequena participação como o pai dos gêmeos recém-nascidos e que provoca e é baleado por Frank Baldy. Duas das sequências principais de Puppo neste western ocorrem quando ele, dublando Van Cleef, é arrastado amarrado aos cavalos de um trio de bandidos e também quando do referido insólito duelo a cavalo entre Talby e Owen White (Stefanelli). Para não dizer que não há nada cômico em “O Dia da Ira”, é impossível não rir do xerife Nigel (Giorgio Gargiullio), tão seguro de si que diz que a estrela em seu peito vale mais que uma arma.
O confronto final entre Scott Mary e Frank Talby |
A trilha musical ficou a cargo de Riz Ortolani, conhecido dos brasileiros por “More”, canção de enorme sucesso que ele compôs para o filme “Mundo Cão”. Nada de especial na trilha musical com o uso insistente de guitarras para pontuar os momentos importantes deste faroeste. A alemã Christa Linder, que foi Miss Áustria em 1962, interpreta no filme a canção “It’s Time to Go”, de autoria de Ortolani. Filmado quase todo na Espanha, a fotografia é de Enzo Serafin. Uma curiosidade é que houve uma espécie de acordo entre os dois astros quanto à disputa por qual nome seria apresentado primeiro nos créditos: na versão lançada na Europa o nome de Giuliano Gemma aparece primeiro; já nos Estados Unidos e na Inglaterra, o nome Lee Van Cleef é quem surge à frente do nome de Gemma. O lançamento na Itália de “O Dia da Ira”, que recebeu o título inglês de “Day of Anger”, se deu em dezembro de 1967. Normalmente os personagens dos westerns italianos possuem nome e sobrenome, porém o velho xerife tem seu nome completo como ‘Murph Allan Short’, o que bem poderia ter sido uma homenagem a dois cowboys dos faroestes norte-americanos: Audie Murphy e Alan Ladd, ambos ‘short’. E “O Dia da Ira”, sem qualquer pretensão, não deixa de ser uma homenagem da escola italiana de faroestes à tradicional vinda dos States.
A chegada de Talby ao lugarejo de nome Bowie (Águas Calientes em "Por uns Dólares a Mais"); abaixo Al Mulock comVan Cleef e Gemma. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário