Os programas duplos nos cinemas foram
criados nos anos 30 como forma de atrair o público nos tempos da depressão econômica.
Esses programas nos Estados Unidos eram chamados de ‘Double Feature’ ou ‘Double
Bill’. Nesse tipo de programa os cinemas exibiam um filme de melhor
orçamento, estrelado por astros famosos, que era o filme principal. Como
complemento era exibido um filme de menor duração produzido por uma unidade
secundária do estúdio ou por estúdios menores, com artistas menos conhecidos ou
com carreira em declínio. Esses filmes eram rotulados de ‘B’ e faziam parte dos
programas duplos que eram obrigatórios nos bairros das grandes cidades, nas
cidades menores e nos drive-ins popularizados nos anos 50 nos Estados Unidos. Entre as pequenas produtoras
independentes que produziam filmes ‘B’ a mais famosa foi a American
International, de Roger Corman. Uma outra produtora que se tornou conhecida foi
a Panoramic Productions, de propriedade de Leonard Goldstein e que nos anos
1954 e 1955 produziu nada menos que dez filmes que completavam programas
duplos. Não raramente esses pequenos filmes agradavam mais aos espectadores que
os filmes principais do programa. Isso deve ter acontecido com “Vingança
Terrível” (The Raid), que a Panoramic Productions produziu e a 20th Century-Fox
distribuiu em 1954.
Hugo Fregonese |
Reunião
de futuros astros - “Vingança Terrível”, como os demais
filmes da Panoramic Productions custou ao redor de 500 mil dólares. Esse era o
salário de atores como Humphrey Bogart, Gary Cooper, Marlon Brando e John
Wayne. O ator mais conhecido do elenco de “Vingança Terrível” foi Van Heflin,
muito respeitado, especialmente depois do sucesso de “Os Brutos Também Amam”
(Shane), lançado em 1953. O elenco de “Vingança Terrível” foi completado com
atores praticamente iniciantes mas que viriam a fazer sucesso no cinema e na
televisão antes do final da década. Lee Marvin se tornaria astro com a série de
TV “M-Squad”, Richard Boone com “O Paladino do Oeste”, Peter Graves com
“Fúria”, Claude Akins com “Xerife Lobo”, James Best nos anos 80 como o xerife
Rosco P. Coltrane na série “The Dukes of Hazzard” (no Brasil “Os Gatões”). O
principal papel feminino de “Vingança Terrível” foi interpretado por Anne
Bancroft, atriz que ganharia projeção em “O Milagre de Anne Sullivan” (que lhe
valeu um Oscar) e “A Primeira Noite de um Homem”. O diretor escalado para essa produção da
Panoramic Productions foi o argentino Hugo Fregonese que teve a sorte de contar
com o diretor de fotografia Lucien Ballard. No ano anterior, 1953, Hugo Fregonese
(que era casado com a atriz Faith Domergue) havia dirigido “Sangue da Terra”,
seu filme mais conhecido.
Heflin e Marvin durante a fuga; abaixo reunião dos ex-prisioneiros vendo-se George Keymas, James Best, Peter Graves, Claude Akins e Lee Marvin. |
Desforra
planejada - “Vingança Terrível” leva à tela um acontecimento real
ocorrido em outubro de 1864, quando um grupo de sete confederados, entre eles seis
oficiais, consegue escapar de uma prisão situada em Plattsburg (Nova York). Todos
escapam, menos o único soldado do grupo que é morto pela patrulha que os
persegue. Conseguindo escapar eles se reúnem com células rebeldes clandestinas
e, como civis, ganham identidades falsas. Todos os ex-prisioneiros sofreram com
a Guerra Civil, perdendo casas e parentes ante a ação violenta comandada pelo
General Sherman. Sabedores que a derrota é iminente, objetivam infligir o
máximo de danos possíveis à União, começando suas ações predatórias pela pequena cidade de St. Albans,
no Estado de Vermont, fronteira com o Canadá. Além de assaltar os bancos de St.
Albans, devem destruir o que for possível na cidade, ateando fogo em estabelecimentos
e residências. Quem comanda a operação é o Major Neal Benton (Van Heflin) que
se fazendo passar por um empresário canadense, hospeda-se na pensão da viúva
Kate Bishop (Anne Bacroft). Lá vive também o veterano Capitão Lionel Foster
(Richard Boone), nortista que perdeu um braço numa batalha da Guerra Civil. Os
planos do grupo sulista são atrapalhados pela presença de um batalhão de soldados
da União e pelo Tenente Keating (Lee Marvin). Incontrolável em seu desejo de
vingança, Keating mata um soldado ianque e ameaça matar o pastor local durante
um culto. Mas Keating acaba morto pelo Major Benton que assim impede que o
plano confederado seja descoberto. Os bancos são roubados e muitos prédios são
queimados, após o que o Major Benton e seus homens partem de St. Albans,
deixando a cidade semi-arrassada.
Van Heflin e John Dierkes. |
Episódio
contado por um sulista - Baseado em história de Herbert
Ravenel Sass e com roteiro de Francis M. Cockrell e Sidney Boehm, “Vingança Terrível”
é um dos raros filmes sobre a Guerra Civil que mostram algum tipo de triunfo
dos confederados. Isso porque Herbert Ravenell Sass era um autor nascido na
Carolina do Sul e seus livros sempre enalteceram os sulistas mostrando-os como
virtuosos e justificando atos de guerra por eles praticados, como os narrados
neste filme. Atrocidades ocorreram de ambos os
lados mas “Vingança Terrível” faz crer que apenas os ianques usaram de
crueldade e justifica o ataque a partir do ponto de vista dos confederados como no caso do Capitão Dwyer (Peter Graves) que teve a casa queimada e a esposa
morta pelos nortistas. Infelizmente a história levada à tela omite que dos 208
mil dólares roubados dos três bancos, a maior parte foi perdida durante a fuga,
sendo recuperada em seguida. E St. Albans não foi em grande parte queimada como
mostra o filme uma vez que apenas um celeiro ardeu em chamas e os estragos
foram poucos. Como um bem planejado ataque a uma pequena e desprotegida cidade,
o plano confederado foi coroado de êxito e justificado como forma de retaliação
contra as muitas pilhagens e mortes praticadas pelo nortistas.
Anne Bancroft com Van Heflin e com Richard Boone. |
Tramas
paralelas - Esquecida a visão parcial do autor que foi aceita pelos
roteiristas, “Vingança Terrível” é um western narrado com suspense nos
preparativos do ataque final a St. Albans. E o filme contém excelentes
subtramas construídas pelas consequências da guerra, uma delas o conflito
particular do Capitão Foster (Richard Boone), cujo braço foi acidentalmente
automutilado para que ele, ferido, fosse afastado dos campos de batalha. Homem
amargurado, Foster revela que é incapaz de conviver com sua covardia, tendo
durante o ataque a St. Albans a oportunidade de lutar contra sua índole, reagir
e se tornar um homem digno. O triângulo entre o Capitão Foster, Kate Bishop e o
Major Benton se encaixa naturalmente na trama com o ciúme do Capitão Foster
motivando-o a encontrar uma bravura que desconhecia possuir. Há ainda espaço
para aproveitar bastante bem a presença de Lee Marvin como o psicótico tenente
Keating, cuja perda de controle emocional coloca em risco o plano confederado,
até Keating ser baleado e morto pelo Major Benton dentro da igreja de St.
Albans.
Van Heflin e Tommy Rettig, a dolorosa descoberta da verdade. |
Destruição
de uma imagem - “Os Brutos Também Amam” foi um filme que marcou bastante
pela presença do personagem do pequeno Joey Starrett, influenciando muitos
outros roteiros de westerns em que crianças desempenhavam papéis importantes
para a história. Em “Vingança Terrível” há a presença de Larry Bishop,
interpretado pelo excelente ator infantil Tommy Rettig. Assim como Joey
Starrett idolatrava Shane, Larry
sente admiração pelo estranho que chega à cidade (Major Benton). Larry chega a
imaginá-lo mesmo como novo esposo de sua mãe viúva, para mais tarde ser abalado
pela decepção da descoberta da real identidade de Benton. Nessa sequência Larry
se depara com o homem que tanto admira vestido com uma farda confederada,
verdade cruel e ao mesmo tempo pungente que destrói o sonho do menino. Crianças
nortistas foram ensinadas a odiar os inimigos de guerra e são mostradas no
filme brincando de matar sulistas. “Meu
pai matou mais inimigos que o seu”, diz Larry a um amiguinho. O próprio pai
de Larry foi vítima da guerra fratricida.
O extraordinário Lee Marvin. |
A ferocidade
doentia de Lee Marvin - Guindado à condição de ator
principal, Van Heflin tem boa atuação como o líder da missão. Mas o que não funciona bem em “Vingança
Terrível” é o romance entre Heflin e Anne Bancroft. Ambos formam um par
incrivelmente incompatível, não só devido à má escolha da excelente atriz mas
também por Heflin ser um ator desprovido de qualquer carisma capaz de atrair
uma bela e jovem mulher como Anne Bancroft. Tommy Rettig foi um dos mais bem
sucedidos atores infantis dos anos 50 e seu desempenho neste filme é uma prova
de seu talento. Richard Boone desempenha seu torturado personagem
convincentemente, enquanto Peter Graves é o ator insípido de sempre. Uma pena
que James Best e Claude Akins tenham sido relegados a papéis inexpressivos, o
que não acontece com o veterano Will Wright que desta vez tem uma maior
participação, em ótima caracterização. Além de Van Heflin, estão no elenco de “Vingança
Terrível” os atores Douglas Spencer e John Dierkes, que também atuaram em “Os
Brutos Também Amam”, como o ‘Sueco’ Shipstead e Morgan Ryker, respectivamente. Lee
Marvin que vinha de marcantes atuações como gângster em “Os Corruptos” e como Chino,
o motociclista provocador de “O Selvagem”, apresenta uma ferocidade doentia como
o Tenente Keating, comprovando que a
condição de ator coadjuvante era uma restrição a seu enorme talento.
O elegante Van Heflin. |
Imaculadas
fardas confederadas - A câmara de Lucien Ballard dá um tom
sombrio a esta produção da Panoramic Productions, ele Ballard que entre tantos
grandes trabalhos no cinema seria o responsável pela fotografia da obra-prima
“Meu Ódio Será Sua Herança”. “Vingança Terrível” tem uma falha quando apresenta,
durante o ataque a St. Albans, o Major Benton e outros sulistas trajando impecáveis
fardas confeccionadas com esmero e botões reluzentes. A seis meses da rendição ocorrida em Appomattox
em 9 de abril de 1865, restavam aos sulistas praticamente apenas andrajos restantes
das batalhas e a visão de um elegante Major Benton chega a provocar risos. À
parte esse detalhe, a direção de Hugo Fregonese é segura e o nome do diretor argentino que hoje está esquecido merece ser lembrado. Se não pelo conjunto de sua filmografia, ao
menos por este filme ‘B’ que é melhor que muito filme ‘A’ e que deve ter complementado
nos programas duplos da década de 50.
Os confederados Claude Akins e Van Heflin, antes do 'raid' em St. Albans. |
Coincidentemente, revi na semana passada. Lee Marvin já mostra a que veio.
ResponderExcluirAo contrário dos americanos, não morro de amores por faroestes sobre a matança que foi a Guerra Civil deles (americano gosta tanto de guerra que até fizeram uma entre eles mesmos, não é?), mas esse dá gosto assistir. Muito suspense, muita ação, atores e personagens marcantes.
Van Heflin,infelizmente, não conseguiu construir uma grande carreira, mas sou muito fã dele.
Acima de tudo, um belo texto este seu, o que já é rotina. Parabéns.
José Tadeu
Olá, José Tadeu
ResponderExcluirObrigado pelo elogio. Considerada o rosto que Van Heflin possuía, Van Heflin até que fez uma boa carreira como ator coadjuvante. Além da cara, Heflin teve outro inimigo, a bebida, que antecipou sua morte, ocorrida aos 61 anos de idade.
Darci
Parabens Darci. Tenho este pequeno western e tudo que você escreveu é verdade. Apesar do diretor ser fraco, este filme eu assisto uma vez por ano. Tirando certos erros e algumas licenças poeticas é um western para ser revisto e conhecido por todos os cinefilos. Continuo lendo sempre seus artigos. Até ...
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