Meados de 1949, São Paulo. Num belo
domingo preparo-me para ir ao cinema. Pela Rádio Record, PRB-9, “A Maior”, já
terminou o programa “Hoje é Domingo”,
um sonoro desfile de astros e estrelas no qual se destacaram Bob Nelson,
Isaurinha Garcia, Demônios da Garoa, Monte Alegre, etc.
Isaurinha Garcia, Os Demônios da Garoa e
Bob Nelson, artistas do cast da Rádio Record; Alvarenga e Ranchinho também usavam Glostora. |
Após a indefectível macarronada
dominical, eu, um garotinho de nove anos de idade, calças curtas, sapatos
engraxados, cabelos levemente untados com o óleo “Glostora”, saio com destino
ao “Urquinha”, como era conhecido o Cine Urca, que se localizava na Vila
Izolina Mazzei, na Rua Padre Leão Peruche (hoje, Rua Vitório Mazzei) esquina
com a Rua Frei Mariano Veloso. Funcionava numa modesta casa em que mal cabiam,
creio, 250 a 300 espectadores.
Com o dinheirinho do ingresso amealhado
durante a semana, um trocadinho dos pais, gorjeta dos tios, catando uns sacos
de latas – diversão lucrativa dos garotos de então – dirigia-me todos os
domingos, após o almoço, ao “Urquinha”. Não me importava qual o programa, a
freqüência era obrigatória. Caso faltasse, o que falar na 2.ª-feira na escola e
como comentar o seriado?
Aproximo-me do Cine Urca. Na calçada,
com uma caixa envidraçada, um senhor de cabelos grisalhos, rosto avermelhado,
chapéu cinza, avental branco e um bondoso sorriso, vendia doces, os tais de
‘quebra-queixo’, feito à base de coco e ‘machadinho’, um doce caramelado,
apresentado nas cores creme rosada, tão ao gosto da criançada. O curioso é que
a gente comprava cinquenta centavos de doce e ele nos dava um pequeno bocado,
advertindo: “Olha, não dou mais que é prá
vocês não enjoarem!” Ato contínuo, todos caíamos na risada.
Alguns dos gibis lidos pelo
garoto Achilles e o álbum de Balas Futebol colecionado pela petizada. |
A fila compunha-se, praticamente, de
todas as crianças do lugarejo e era uma oportunidade a mais para trocarmos as
figurinhas das “Balas Futebol”, com o ‘Futebolino’ e as famosas carimbadas,
além das formidáveis revistas “Gibi Mensal”, “O Lobinho”, etc.
Enfrento a esperada fila e contemplo os
cartazes nas paredes: Breve “Flash Gordon no Planeta Mongo”, “O Homem-Leão”,
ambos com Larry ‘Buster’ Crabbe. Um amigo me adianta: “Sabe, o ‘Buster’ Crabbe já foi Tarzan...” E eu, nada sabendo,
incrédulo, digo que não é possível, que o Tarzan é outro (o inesquecível Johnny
Weissmuller).
Adquiro a meia-entrada e entro no
cinema, instalando-me numa das poltronas de madeira, sem estofamento. Enquanto
se espera, somos brindados pelo som da “Valsa dos Patinadores” e, em seguida,
com Roberto Inglês ao piano ouve-se deliciosamente, o bolero “Tres Palabras”. É
um momento de expectativa e devaneio. Chega a hora do início da sessão. É dado
o sinal. As luzes se apagam. A magia do Cinema vai começar. Divirto-me às
escâncaras com o Gordo e o Magro. Desfruto de um jornal de notícias americanas,
tendo como fundo musical u’a marcha da Marinha que impele a garotada a
acompanhá-la, batendo ruidosamente os pés no chão. Não posso deixar de ficar
admirado, extasiado, ante a apresentação do ‘Pato Donald’ nas suas fascinantes
cores azul e amarela em cenas que enchem os olhinhos infantis de enlevo e
fantasia.
Chega o intervalo. As luzes se acendem
e estoura uma guerra entre a garotada, atirando uns nos outros, balas de papel.
Tom Tyler como 'The Phantom' (O Fantasma Voador). |
Cenas de "Sempre no
meu Coração": acima Walter Huston e Gloria Warren; no centro Borrah Minevitch, Gloria Warren, Frankie Thomas,Walter Huston e Kay Francis; abaixo Borrah Minevitch e seus gaitistas. |
Novamente o sinal é ouvido, a sala
escurece. A plateia silencia. Todos estamos ansiosos, atenção voltada para a
tela. Aparece o símbolo da Columbia Pictures, provocando gritaria geral,
ensurdecedora: “O Fantasma Voador”! Sim, este herói é a causa de toda a
algazarra. A simples visão do mascarado provoca uma alegria intensa na petizada
que se comporta de forma barulhenta. O gerente e os lanterninhas, aos poucos,
conseguem obter silêncio. O seriado prossegue com as cenas eletrizantes que
empolgam a meninada, terminando rapidamente o capítulo. Satisfeito, ainda
imaginando uma solução para o episódio, vejo aparecer na tela um barquinho a
vela nos créditos do filme “Sempre no meu Coração” (Always in my Heart). De
cara, fico fascinado pela simpatia da cantora, enquanto ouço alguns garotos
estrilando que o filme não é de ‘mocinho’,
é ‘de amor, caramba!’ A fita se desenrola
e ficamos sabendo que o velho “Walter Huston) é um ex-presidiário, pai da moça
(Gloria Warren) e do rapaz e que sua mulher (Kay Francis) vai se casar com um
ricaço.
Nesse filme, para nossa sorte, é
apresentada, provavelmente, uma das mais belas e contagiantes cenas musicais já
vistas no Cinema: aparece quando Huston está em casa, ao piano, cantando a
música-tema para Gloria que ouve atenta. Esta linda melodia ecoa agradavelmente
por todo o bairro. Ao ouvi-la, as pessoas vão abandonando seus afazeres, cada
uma aderindo ao grupo que vai subindo a alameda: quem é músico, pega sua
gaita-de-boca e vai acompanhando Borrah Minevitch que segue alegremente
liderando a turma, executando “Always in my Heart”, música composta por Ernesto
Lecuona com rara felicidade. Embevecido pela excelência da melodia que se
mistura com a alegria e felicidade dos moradores do pequeno lugar, premiado com
as graças do anãozinho tocador de gaita e de seu líder (Borrah), tocado pela
maviosa voz de Gloria Warren e, ainda, comovido pela situação – a moça (Gloria)
não sabe que o velho maestro (Huston) que a acompanha ao piano é seu pai –
permaneço estático, arrebatado, olhos fixos na tela... marejados! Com toda a
certeza, aproveito prazerosamente aquela cena de graça, beleza e música. Cuido
para que não percebam que meus olhos lacrimejam... (snif) Noto alguns garotos
fazendo o mesmo. Engraçado... (snif) somos todos iguais... (snif) a não ser
que, realmente, caiu um ‘ciscão’ no olho de toda essa gente.
A
fita prossegue com o pai se ferindo ao defender o filho, conseguindo, porém,
deter o vilão. A petizada vibra com aquela ação, aplaudindo a atitude magnífica
do pai herói.
Segue
o filme com final feliz, encerrando-se com esplendorosa apresentação conjunta
de Gloria Warren cantando, sendo acompanhada por Huston ao piano e o conjunto
de gaitas-de-boca de Borrah Minevitch.
Regresso
comportadamente à casa com alegria tal que, imediatamente, compartilho meu
entusiasmos com os familiares, contando-lhes o filme. Não há dúvida, aquele foi
um ótimo domingo. No dia seguinte, no bairro, a música “Sempre no meu Coração”
pairava no ar. Toda a criançada que assistiu ao filme assobiava ou cantarolava
a canção-tema com o semblante alegre, feliz. Que poder extraordinário tem o
Cinema!
Assim,
relembrei com saudade um domingo naquele cineminha, lamentando, porém, não ter
podido ver os derradeiros capítulos de “O Fantasma Voador”.
George
Sanders (O Santo), Warner Oland (Charlie
Leo Gorcey e Huntz Hal, Moe Howard, Larry
Fine eChan), Errol Flynn, Carlitos, Cantinflas, Sabu, Curley Howard (Os Três Patetas). |
As
matinês se seguiram sempre com emoção. A pequena tela era fonte de aventura,
diversão e deslumbramento. Aos olhos da gurizada foram desvendados intrincados
crimes pelo Santo, Charlie Chan e outros detetives em filmes policiais
notáveis. Ruidosas gargalhadas acompanharam cenas com Chaplin, Cantinflas, os
Três Patetas, Leo Gorcey e Huntz Hall com os ‘Bowery Boys’. Vibraram com os imperdíveis
faroestes muitos com George O’Brien e Tim Holt, “A Lei do Mais Forte”, com
James Cagney e Humphrey Bogart. Tornaram-se inesquecíveis as fitas de aventuras
com Douglas Fairbanks Jr., Jon Hall, Sabu, “As Aventuras de Robin Hood” e
“Capitão Blood” com Errol Flynn, além de “Gunga Din” e “O Sargento York”. A
garotada se impressionou com o “Lobisomem”, “Frankenstein” e “King Kong”, tendo
repercutido muito “O Homem Invisível”. Novamente a garotada se sensibilizou com
“Luzes da Cidade”, de Chaplin e “De Amor Também se Morre” com Charles Boyer e
Joan Fontaine. Belos filmes foram emoldurados por Dorothy Lamour, Maria Montez,
Rita Hayworth, Susan Hayward, Barbara Stanwyck, Ginger Rogers, Doris Day, etc.
Alguns astros e estrelas
que o menino Achilles Hua viu na tela do pequeno Cine Urca: Rita Hayworth, James Cagney, Susan Hayward, George O'Brien, Barbara Stanwyck e Tim Holt. |
Poucos
anos depois, o cineminha acabou. Seus espectadores-mirins tiveram de se
deslocar para o bairro de Santana, mais desenvolvido, onde passaram a
frequentar os Cines ‘Vogue’ e ‘Hollywood’ e, mais tarde, a Cinelândia. Tudo
passa sobre a Terra, já dizia Alencar, e com o Cine Urca não foi diferente.
Cumpriu importante papel naquele bairro em formação, divertindo os garotos que
logo se tornaram adeptos da Sétima Arte. Assim, sua passagem ficou
indelevelmente marcada na memória de espectadores mercê desses inesquecíveis
momentos. E registrando a benéfica existência do ‘Urquinha’, ainda me vem à
lembrança a sua fachada, os cartazes colados nas paredes, a pequena bilheteria,
a sua tela...
ACHILLES HUA
Achilles Hua é muito querido por seus amigos que admiram seus profundos
conhecimentos sobre cinema, música e... futebol. Na foto acima ele está ao lado
daqueles com quem poderia ter formado uma grande linha média do São Paulo
Futebol Clube: Achilles Hua, Jader Jesus Donato e Clóvis Ribeiro.
Na foto abaixo Achilles faz um dueto com Laudney Mioli,
com quem é capaz de passar horas falando de música brasileira dos bons tempos,
as quais cantam afinadamente.
Olá, parceiro, estou de volta, pronto para trocar comentários e seguir suas postagens. Fico feliz em ver que seu blog continua a todo vapor.
ResponderExcluirCumprimentos cinéfilos!
O Falcão Maltês
Será que o amigo Achilles Hua aderiu a esta "modernidade" chamada internet !! Estou aguardando um contato !!
ResponderExcluirAbraços !!
Com a ajuda da digníssima o Achilles dá suas tímidas navegadas. E gostou de ver seu 'Urquinha' na web.
ExcluirBelas lembranças de uma infância feliz e cultural, ligada fortemente ao cinema. Invariavelmente, quem o teve(o cinema) como uma fonte constante de diversão, é levado por ele
ResponderExcluira um futuro adulto responsável, produtivo e terá para sempre na sua memória, estas recordações mágicas e indeleveis. Aí está a magia do cinema.
Pena que não alcancei na minha região(Piauí), os famosos matinês e seriados; com certeza fomos menos felizes. Parabéns por esta crônica, parece que aquele menino era eu.
Joailton.
Olá, Darci!
ResponderExcluirUma matéria bastante agradável de se ler, sobre alguém que viveu uma época que dá gosto recordar. Como o cinema fazia diferença. Realmente a cena em que os Harmonica Rascals vão se juntando a Borrah Minevitch tocando "Always in My Heart" é daquelas antológicas. Curiosamente Jo Graham dirigiu apenas 4 filmes e certamente este é o melhor. Eis a verdadeira essência da infância.
Um abraço!
Muito culto e inteligente só ele
ResponderExcluirEu gostaria muito de entrar em contato com o Dr. Acchiles Hua. Fomos colegas na Polícia Militar e contemporâneos na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Infelizmente perdemos o contato. Estou no WhatsApp (11) 99742-1098. Meu nome: Eraldo Bartolomeu Cidreira Rebouças.
ResponderExcluirOlá, Eraldo, vou providenciar seu contato com o amigo Achilles. Um abraço.
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