Com “Paixão dos Fortes” (My Darling
Clementine), John Ford filmou mais um capítulo da sua magnífica ‘Americana’,
obra cinematográfica que imortalizou a formação dos Estados Unidos distante dos
centros urbanos. Singela obra-prima do gênero western, “Paixão dos Fortes” não
chegou a ser uma unanimidade e o produtor Hall B. Wallis era um dos que
criticavam esse filme. Wallis chamou o filme de Ford de “Excessivamente romântico, fantasioso e muito longe da verdade dos
fatos”. Muito franco e sem rodeios, o diretor John Sturges ignorando
qualquer ética disse que “Paixão dos Fortes” “...era uma merda e mesmo John Ford sendo um tremendo diretor, seu filme
não tem nada a ver com Wyatt Earp e com o que se passou no OK Corral”. Pois
Wallis e Sturges se reuniram para fazer um filme recontando os fatos sobre o
tiroteio no Curral OK, em Tombstone. Era de se esperar então um faroeste
revisionista que fosse fiel aos acontecimentos ocorridos naquela tarde de 26 de
outubro de 1881. E mais que isso, era de se esperar também que o faroeste ao
qual deram o atrativo título de “Gunfight at the OK Corral” (Sem Lei e Sem
Alma) fosse o filme definitivo sobre o confronto entre os Earps e Doc Holiday
contra alguns Clantons e outros McLoweries. Wallis e Sturges não conseguiram
nem uma coisa nem outra.
|
Kirk Douglas e Burt Lancaster |
A lei
e a ordem em Tombstone - A história de “Sem Lei e Sem Alma”,
inspirada em artigo de George Scullin e roteirizada por Leon Uris começa com o
delegado Wyatt Earp (Burt Lancaster), de passagem por Fort Griffin. Earp está
em busca de informações sobre o bando chefiado por Ike Clanton (Lyle Bettger)
mas acaba ajudando o dentista Doc Holiday (Kirk Douglas), transformado em
jogador, a se livrar de um possível linchamento e fugir de Fort Griffin. Earp e
Doc se reencontram em Dodge City, onde Earp é o responsável pela manutenção da
lei e da ordem. Em Dodge City é a vez de Doc ajudar Earp a enfrentar um bando
de foras-da-lei. A amizade entre os dois aumenta e quando Wyatt Earp é chamado
por seu irmão Virgil (John Hudson), Marshal de Tombstone, para ajudá-lo a enfrentar
o bando dos Clantons, Doc Holliday se junta a Earp e a seus irmãos Virgil e
Morgan (DeForest Kelley). No confronto entre os dois grupos são mortos os
Clantons, os irmãos McLowery e ainda Johnny Ringo (John Ireland) membro da
gang de Ike Clanton. Ao final Wyatt Earp segue seu destino como
delegado federal, separando-se do amigo Doc Holliday.
|
Kirk Douglas e Jo Van Fleet (acima); Burt Lancaster e Rhonda Fleming |
Decepções
amorosas de Doc e Wyatt - O início de “Sem Lei e Sem Alma” faz
lembrar o começo de “Matar ou Morrer”, com três bandidos chegando a uma cidade
ao som de uma canção que serve de intróito ao filme. Um desses bandidos,
inclusive, é o mesmo traiçoeiro Lee Van Cleef que é morto por Doc Holliday,
pistoleiro habilidoso também com as facas. Uma delas Doc crava no peito de Ed
Bailey (Lee Van Cleef), momento culminante da excelente meia hora
inicial do western de John Sturges. Doc e Wyatt já se conhecem pois o dentista
havia extraído um dente do marshal dez anos antes. Nesse tempo Wyatt Earp “...era louco e irresponsável”, como
lembrou John Shanssey (George Mathews), o dono do saloon de Fort Griffin.
Operou-se, porém, uma metamorfose em Wyatt Earp que passou de desordeiro a
homem da lei para ganhar “...um quarto de
12 dólares por mês nos fundos de uma casa velha e um distintivo de lata” conforme
lhe alertou Cotton Wilson (Frank Faylen), o xerife de Fort Griffin. Impor a lei
e a ordem era uma tendência familiar para os Earps pois todos os quatro irmãos
usavam distintivos nas camisas. E diferentemente de Cotton Wilson nenhum deles
se deixava corromper. A aproximação entre Doc Holliday e Wyatt Earp ocorre em
meio a decepções amorosas dos dois homens, respectivamente com Kate Fisher (Jo
Van Fleet) e com Laura Denbow (Rhonda Fleming). A relação entre Doc e Kate é
sempre violenta e traumática, enquanto Wyatt se envolve de forma inexplicável com Laura. E
ainda mais estranhamente Wyatt abandona uma idílica vida futura com Laura para
enfrentar os bandidos que fazem o que querem em Tombstone. Claro que o leitor
lembrou mais uma vez de “Matar ou Morrer”.
|
Wyatt Earp retira o distintivo e joga-o ao chão; o corpo é de Billy Clanton (Dennis Hopper). |
Confronto
eletrizante - Dois momentos com Wyatt e Doc enfrentando bandidos não
chegam a emocionar o espectador ávido por ação. No primeiro deles o enorme
bando de desordeiros liderado por Shangai Pierce (Ted de Corsia) é facilmente
dominado por Wyatt e Doc. Os bandidos são encarcerados na pequena cadeia de
Dodge City e não se ouve mais falar deles, exceto de Johnny Ringo, desafeto
pessoal de Doc. O confronto seguinte passa-se à noite quando três bandidos
atacam Doc e Wyatt acreditando que ambos estão dormindo e o trio é morto pelo
marshal e pelo jogador-pistoleiro. O assassinato de James, o mais novo dos
irmãos Earp abrevia o clímax de “Sem Lei e Sem Alma” com o confronto marcado
para o amanhecer no OK Corral. É quando o western de Sturges se torna eletrizante com os três Earps e mais Doc Holliday liquidando os cinco temíveis
oponentes. Após a morte de Billy Clanton (Dennis Hopper) no estúdio fotográfico 'Fly’s', um desolado Wyatt Earp retira o distintivo jogando-o ao chão, repetindo
o gesto de Will Kane (Gary Cooper) em “Matar ou Morrer”.
|
Kirk Douglas |
O soberbo
Kirk Douglas - “Sem Lei e Sem Alma” não é, no entanto, um faroeste apenas
com excelente começo e um emocionante final. Sequência após sequência Kirk
Douglas faz uma memorável e tensa criação de Doc Holliday, especialmente nas cenas em que contracena com Jo Van Fleet, todas com incrível força
dramática. Kirk Douglas havia sido indicado por três vezes, nos últimos quatro
anos, para o Oscar de Melhor Ator e apenas esse fato explica não ter sido
indicado novamente por sua atuação em “Sem Lei e Sem Alma”. O mesmo vale para
Jo Van Fleet e mais ainda quando se sabe que John Sturges nunca se destacou por
ser um grande diretor de atores. O forte de Sturges sempre foi filmar
sequências de ação como em “A Fera do Forte Bravo”, "Duelo de Titãs", “Sete Homens e um Destino”
e em “Fugindo do Inferno”, entre outros movimentados filmes. E o esperado tiroteio no Curral OK, ainda que
empolgante, não chega a ser perfeito pois as mortes dos irmãos Tom e Frank
McLowery (Jack Elam e Mickey Simpson) são inconvincentes e destoam dos demais
momentos do conflito. “Sem Lei e Sem Alma” foi rodado em 55 dias, quatro deles
integralmente dedicados à troca de tiros entre os dois grupos no OK Corral.
Sturges diagramou, coreografou e ensaiou exaustivamente as sequências que na
tela duram seis minutos e que poderiam aproveitar melhor a expressividade
neurótica de Jack Elam, cuja morte é cópia daquela que Elam teve em “Correio do
Inferno”, de Henry Hathaway, cinco anos antes.
|
Earl Holliman e Burt Lancaster com o Colt Buntline Special. |
Falta
de acurácia - O trio Wallis-Uris-Sturges acreditou que poderia desmitologizar
a figura de Wyatt Earp com “Sem Lei e Sem Alma”. Afinal vivia-se os tempos em
que o western havia se tornado adulto e eram expostas as neuroses dos heróis
cujas personalidades eram abordadas fortemente no aspecto psicológico. O
western de Sturges mostra um Wyatt Earp bebendo uísque em muitas cenas e ainda
tendo uma ambígua relação com Doc Holliday, este último fato, certamente uma
peça de ficção. No entanto o filme não toca em fatos comprovados que revelaram que Wyatt
Earp conciliava sua atividade de homem da lei com a de explorador de
prostituição e da jogatina, dono de bordel e de saloon que era. E mesmo o Wyatt
Earp de Henry Fonda, taxado por Wallis de parecer um ‘choirboy’ (moço de
coral), passa grande parte de “Sem Lei e Sem Alma” fazendo discursos moralistas
com lições cívicas a ponto de ser, por diversas vezes, chamado de ‘pregador’
por Doc Holliday. E o trio Wallis-Uris-Sturges conseguiu ainda colocar Johnny
Ringo na história, e matar Phinneas Clanton e Ike Clanton no tiroteio do OK
Corral, quando se sabe que Finn Clanton não participou do evento e Ike Clanton
morreu dois anos depois. Sem esquecer que James, o mais velho dos irmãos Earp
passa a ser o mais novo deles no filme. E onde andava John Behan, o xerife de Tombstone
que não é mencionado em “Sem Lei e Sem Alma”? Esqueceram Behan mas não se esqueceram
de colocar nas mãos de Wyatt Earp um Colt Buntline Special, aquele de cano
alongado. Esse fato se deve ao sucesso que fazia em 1956/57 a série de TV “The
Life and Legend of Wyatt Earp” na qual Hugh O’Brian acertava os bandidos de uma
extremidade a outra da Allen Street com seu Buntline Special.
|
Acima Lancaster; abaixo Kirk Douglas vigia Lee Van Cleef pelo espelho enquanto é servido por Bing Russell. |
Um
contido Wyatt Earp - A produção de “Sem Lei e Sem Alma” não
economizou no elenco que, além dos dois grandes astros – Lancaster e Douglas –
tem inúmeros nomes conhecidos. O western é praticamente todo de Kirk Douglas,
uma vez que seu personagem, o atormentado pistoleiro que sofre de tuberculose, era perfeito para Douglas. As crises que vitimam Doc Holliday são
magnificamente vividas por Kirk que ainda demonstra sua habilidade com facas e
baralho. Bastante contido, o Wyatt Earp de Burt Lancaster chega a ser cansativo
em suas lamúrias e aconselhamentos. Apenas durante o tiroteio final é que
Lancaster explode como o espetacular ator de cenas de ação. Jo Van Fleet brilha
apenas menos que Kirk Douglas, enquanto Rhonda Fleming não sabe ao certo o que
está fazendo no filme além de desfilar os trajes para ela criados por Edith
Head. Earl Holliman muito bom como Charles Bassett. Obscuros todos os irmãos
Earp (DeForest Kelley, John Hudson e Martin Milner). George Mathews é um
esplêndido ator, assim como Olive Carey, ambos com poucas cenas no filme, ainda
assim muito mais que Whit Bissell que interpreta o historicamente importante
personagem ‘John Clum’, jornalista do ‘Tombstone Epitaph’. A mencionar a
presença de Bing Russell, o pai de Kurt Russell, como barman pois Kurt Russel interpretaria
Wyatt Earp, em 1993, no celebrado “Tombstone – A Justiça Está Chegando”.
|
Ted de Corsia e John Ireland. |
O
fraco Ike Clanton - Capítulo à parte os bandos que
aparecem em “Sem Lei e Sem Alma”, a começar pelo trio chefiado por Lee Van
Cleef. A figura imponente de Ted de Corsia lidera outro bando enquanto o ótimo Frank
Faylen é o xerife convertido para o mal. Mickey Simpson, que em “Paixão dos
Fortes” era um dos irmãos Clanton desta vez interpreta Frank McLowery e John Ireland que
foi Billy Clanton no western de John Ford desta vez é Johnny Ringo, com boa atuação.
Billy Clanton, por sua vez é interpretado pelo jovem Dennis Hooper sem permitir
suspeitas que viria a ser um dos grandes vilões do cinema. As decepções ficam
por conta de Jack Elam, como foi dito, um mero e desperdiçado figurante e Lyle
Bettger, sem expressividade interpretando um fraco Ike Clanton.
Cinematográfica
caminhada - Muitos acreditam que a caminhada do bando de Pike Bishop em “Meu Ódio Será Sua Herança”, memorável momento do gênero western, foi
copiada da caminhada dos Earps e mais Doc Holliday em direção ao Curral OK. Talvez
Sam Peckinpah tivesse essa imagem na sua mente, mas houve também uma caminhada,
ainda que menor, dos quatro bandidos em “Matar ou Morrer”. Se há uma certeza é que
John Sturges viu o western de Fred Zinnemann... Todos os ingredientes acrescentados
aos personagens Wyatt Earp e Doc Holliday em “Sem Lei e Sem Alma” imprimiram a lenda
do Curral OK com tintas ainda mais fortes, tanto que John Sturges não satisfeito
com esta sua primeira versão do evento, refilmou dez anos depois o lendário
tiroteio em “A Hora da Pistola” (Hour of the Gun). E nem mesmo esse foi o filme
definitivo sobre o assunto. Assistir a um e a outro leva à inevitável conclusão
que John Ford era mesmo o grande mestre das pradarias.
|
Clássicas caminhadas em faroestes: Sheb Wooley, Ian MacDonald, Lee Van Cleef e Robert Wilke em "Matar ou Morrer"; Ben Johnson, Warren Oates, William Holden e Ernest Borgnine em "Meu Ódio Será Sua Herança"; Kirk Douglas, Burt Lancaster, John Hudson e DeForest Kelley em "Sem Lei e Sem Alma"; Frank Converse, Sam Melville, Jason Robards e James Garner em "A Hora da Pistola"; Dennis Quaid, Michael Madsen, Kevin Costner e Linden Asbhy em "Wyatt Earp"; Val Kilmer, Sam Elliott, Kurt Russell e Bill Paxton em "Tombstone". |
Pois é, Darci, como eu disse no post da matéria anterior, eu fiquei meio decepcionado com este filme, muito pelos motivos que vc. apontou.
ResponderExcluirAchei a estrutura muito fragmentada, como se o filme fosse formado por vários episódios de TV. Burt Lancaster muito frio, muitos personagens sem aprofundamento, muita falação etc.
Assisti A Hora da Pistola só uma vez, ainda na adolescência, mas tenho dele uma impressão melhor. Não sei se isso se sustentaria se visse de novo.
Como prometido, vou te dizer meu filme favorito do Sturges: claro que é "Duelo de Titãs", com esse mesmo Kirk Douglas duelando com Anthony Quinn, outro monstro. O filme começou fazendo parte de meu TOp Ten, mas à medida que fui me lembrando de outros filmes, ele caiu pros Runners-Up. De repente, nem desses ele fez parte, mas confesso que estou meio arrependido. Cheguei a escrever um texto para ele, falando até do ciclo de filmes sobre juventude transviada (no caso, o personagem de Earl Holliman) que assolou Hollywood com a chegada do rock''n'roll.
Taí. Se um dia eu fizer outro Top Ten, quem sabe ele não entra?
Abraços
Tadeu
Olá, Tadeu
ResponderExcluirConcordo plenamente. "Duelo de Titãs" é um filmaço e poucas vezes um título nacional foi tão apropriado pois Douglas e Quinn fazem um dos mais memoráveis duelos dos faroestes.
Essa coisa de Top-Ten provoca mesmo certo arrependimento pois a lista de hoje quase nunca é a mesma de amanhã. Acabamos de assistir um filme e ele nos parece melhor que aquele outro. Mas como já foi dito exaustivamente, seu Top-Ten é praticamente irrepreensível. O 'praticamente' é porque considero que tem Mann demais e Ford de menos, hi-hi-hi-hi, como riria o Dr. Silvana.
Um abraço do Darci
Darci, boa noite. Mais uma vez você foi m uito feliz em escrevern um artigo nsobre determinado filme. Resolvi dar minha opinião neste. Quando fiz meu top ten muitos malharam eu te-lo colocado entre os melhores, não me importa OS COMENTÁRIOS,o importante é que você escreveu um belo artigo sobre este filmaço. A dupla é estonteante e a carga de ação é deveras envolvente. Parabéns. Até derepente. Parece que não gostam muito deste filme.
ResponderExcluirJohn Sturges merece todo o respeito, mas Gunfight at the OK Corral é um tanto decepcionante. Apesar dos quatro dias dedicados a filmagem do tiroteio, achei que ficou devendo bastante em termos de tensão.
ResponderExcluirNa minha opinião esse filme é um clássico,pois reune todos os elementos da mística de um faroeste,a relação entre doc e wyatt nos faz pensar em redenção,e é o ponto alto desse filme.que cada vez que eu vejo aparece sempre um novo olhar.
ResponderExcluir