17 de fevereiro de 2013

CINE SAUDADE – O HOMEM-RELÓGIO ATACA NA ÚLTIMA SESSÃO



Clóvis Ribeiro
Costumo chamar Clóvis Ribeiro de ‘Mestre’. Nada mais merecido. Esse cinéfilo nascido no bairro da Lapa, em SP, é daquelas pessoas que causam a impressão que sabem de tudo ainda que sua humildade enganosamente leve a imaginar o contrário. Música, cinema, futebol... Clóvis Ribeiro disserta com segurança e propriedade sobre os mais variados temas e assuntos. Ah, ia esquecendo das Histórias em Quadrinhos que ninguém conhece mais e melhor que o amigo Clóvis. Nessa matéria ele é um verdadeiro PhD. E além de sua vasta cultura nessas áreas de entretenimento, Clóvis Ribeiro é um bem humorado contador de histórias. Uma das melhores é aquela passada na sua adolescência e que ele narra para o WESTERNCINEMANIA com suas próprias palavras, numa nostálgica e saborosa viagem aos bons tempos dos cinemas.


XXXXX

Hoje aquele prédio foi transformado em mais um templo evangélico. Até poucos anos atrás era o majestoso ‘Olympia’, homônimo do célebre e reluzente teatro parisiense, palco das maiores atrações internacionais. Mas para os antigos moradores da Lapa e adjacências como Água Branca, Vila Ipojuca, Vila Romana e Pompéia que conheciam o prédio gigantesco da Rua Clélia n.º 1517, as melhores e mais saudosas lembranças reportam às marquises do Cine Nacional. O cinema estava no auge quando foi construído ao final da década de 40. Concebido para uma platéia de milhares de pessoas, o Cine Nacional quase abrangia o quarteirão composto pelas ruas Clélia, Spartaco, Coriolano e Aurélia. Desde o início das obras depreendia-se que era coisa de primeiro mundo com centenas de operários trabalhando a todo vapor. Quando as fundações deram origem aos alicerces, colunas e paredes, confesso que fiquei boquiaberto ao pisar e ver in loco as desproporcionais medidas do futuro cinema do bairro, distante 600 metros da minha residência (Rua Fábia). Consegui acompanhar a obra e ter acesso ao ‘palácio’ graças aos colegas Édson e Mussula, que tinham livre trânsito para visitar o futuro Cine Nacional pois os engenheiros e mestres-de-obra utilizavam o telefone da casa de meus amigos (que moravam no outro lado da rua) para encomendar areia, cimento, ferro e demais materiais para construção. Finalmente concluído, o prédio parecia ser uma nave espacial com centenas de luzes e o pomposo nome em letras com mais de um metro de diâmetro cada uma anunciando CINE NACIONAL.

Ben Johnson e Terry Moore em "Monstro de um Mundo
Perdido", filme que inaugurou o Cine Nacional.
Foi demais para um bairro da Zona Oeste de São Paulo. Além das enormes salas e do balcão, o Nacional abrigava no andar superior os escritórios da Companhia Serrador, proprietária do prédio e exibidora dos filmes do Circuito Serrador. Presenciamos desde a inauguração algo inusitado: o cinema tinha serviço de bar e café. Até cerveja era servida para os adultos que tinham ficha de cor diferenciada no ato da compra. Os corredores laterais eram tão grandes que os caminhões de bebidas por eles acessavam. E o querido e saudoso Cine Nacional foi a coqueluche da região, de 1950 até 1976, quando encerrou as atividades, infelizmente. Jamais esquecerei o impacto da première, superlotado e festivo, o Nacional exibiu na noite de estreia, no dia 27 de março de 1950, o filme “Monstro de um Mundo Perdido” (Mighty Joe Young), com a bela e jovem Terry Moore e os famosos Ben Johnson, Robert Armstrong e Frank McHugh. Na platéia encontrava-se tios, vizinhos, amigos e conhecidos. Hoje, nem marcando hora encontramos rostos e vozes familiares, porque o bairro inteiro cresceu e desapareceu como o cinema.

Página do jornal "O Estado de S. Paulo" anunciando a inauguração do
Cine Nacional, destacando as 3.300 poltronas do luxuoso cinema.


Hedy Lamarr e Victor Mature.
Lembro que curtindo ainda as primeiras semanas do recém-inaugurado Nacional, meu pai que adorava filmes, levou toda a família para assistir “Dick Tracy em Luta”, “Um Pinguinho de Gente”, “O Valente Treme-Treme”, etc. Mais tarde os cartazes anunciaram a chegada de um filme para milhões. Fotos e mais fotos coloridas espalhadas no hall e corredores prometiam para ‘breve nesta sala de espetáculos’ o mais recente sucesso de Cecil B. DeMille: “Sansão e Dalila”. Quem poderia perder tal acontecimento? Eu, no dia do lançamento postei-me juntamente com os primos Dirceu e Décio, na parte da manhã, em frente à bilheteria principal. Mesmo antes do almoço as filas já eram quilométricas. Uma em direção à Rua Spartaco e outra seguia pela Rua Aurélia. Era uma segunda-feira de 1950 e o sacrifício valeu à pena, pois Victor Mature e Hedy Lamarr seguraram o público nas poltronas durante sessões seguidas e por toda a semana. Só no Nacional assisti “Samson and Delilah” cinco vezes, sem contar as reprises em outros cinemas. Foi um filme que marcou época e ninguém além de Mature teria interpretado um Sansão, de carne e osso, vislumbrado e perpetrado por DeMille. E a Dalila Lamarr, postando-se na prisão na célebre cena de Sansão já cego e acorrentado, impossibilitado de curtir a beleza da traidora, mas sensível para respirar o seu sedutor perfume. O diretor das superproduções mesclava religião, sexo e espetáculo, finalizando com mensagens moralistas a maioria de suas obras.

Alguns dos grandes sucessos dos anos 50 que Clóvis Ribeiro assistiu
no inesquecível Cine Nacional, no seu querido bairro da Lapa.




O HOMEM-RELÓGIO

Lee Marvin aterrorizando Gloria Grahame.
Não poderia encer-rar este Cine Saudade sem contar uma passagem hilária assistida na última sessão de uma quarta-feira, dia 26 de maio de 1954. Lembro bem o título do filme pois fui ao Nacional exatamente para presenciar Gloria Grahame em “Os Corruptos”, com Glenn Ford e Lee Marvin, do diretor Fritz Lang. Foi assim: Morava na vizinhança um ‘senhor’ de aparência séria. Mas era só na aparência pois atrás daquele semblante e olhar circunspectos estava um tremendo e refinado gozador. Eu o conhecia bem pois jogava futebol no nosso time e sempre aprontava com classe e inteligência as melhores traquinagens de salão. Um especialista na sua arte arteira e Teodoro era seu nome. O que ele fez no intervalo da derradeira sessão, já passando das 22 horas, eu vi e não atinei qual seria o resultado. De terno, gravata e óculos o ‘senhor’ Teodoro tirou do bolso do paletó um relógio despertador, acertou a hora e deu corda. Ao soar o gongo para o início do filme e enquanto as luzes se apagavam ele caminhou umas dez fileiras de poltronas à nossa frente, esticou um barbante amarrado ao relógio e voltou a sentar-se no local de origem. Decorridos 15 minutos de projeção o despertador soou a campainha e ninguém entendia o que estava acontecendo e de onde vinha o barulho. Um escândalo sonoro.

Rapidamente o Teodoro puxou o barbante com o relógio, travou a campainha, guardou-o e permaneceu estático. O fator surpresa pôs a plateia em polvorosa e o ‘lanterninha’ corria de um canto a outro procurando ‘culpados’. Não encontrando jovens delinquentes entre as muitas poltronas vistoriadas, dirigiu-se até perto do aristocrático Teodoro e perguntou se o mesmo não vira alguns engraçadinhos por aí. Teodoro com a maior cara-de-pau disse que viu sim e que dois rapazes fugiram agachados “umas dez fileiras lá na frente”. Até hoje não esqueci a performance do Teodoro com seu relógio-despertador. Uma figura que jaz no Cemitério da Goiabeira, no Alto da Lapa. Aprontou mil e umas. Vi algumas e foram ótimas.

Shirley MacLaine e Liza Minelli, duas grandes artistas que
estiveram na tela do Cine Nacional e depois no palco da
casa de shows Olympia.
Finalizando a traje-tória do Nacional, posteriormente ‘Olympia’, há o fato curioso de artistas que nos brindaram com atuações na tela e depois no palco, ao vivo, como Shirley MacLaine e Liza Minelli. A Lapa contava ainda com mais cinemas e que aos poucos foram desaparecendo. O ‘São Carlos’ ficava na Rua Guaicurus; o ‘Jaraguá’ na Rua Catão; o ‘Tropical’ na Rua Roma; o ‘Recreio’ na Lapa de Baixo; o ‘Carlos Gomes’ na Rua Doze de Outubro; o ‘Brasília’ na Brigadeiro Gavião Peixoto e até dois mais recentes: o ‘Jacymar’, da Rua Nossa Senhora da Lapa e o ‘Center Lapa’ que ficava no 1.º andar do Shopping Center Lapa. Não passava pela cabeça de ninguém que algum dia tudo isso acabaria. O ritual da ida ao cinema englobava motivos e detalhes intrínsecos a cada cinéfilo, mas uma coisa é certa e insofismável: todos nós éramos felizes e não sabíamos pois a magia das grandes telas, a luz e o ‘barulhinho’ da máquina projetora faziam parte da nossa corrente sanguínea. Teodoro, descanse em paz.

                                                                                                             Clóvis Ribeiro
Clóvis Ribeiro editou durante dois anos a revista "Fancine" que deixou saudade
entre seus fiéis leitores. Acima algumas das capas da "Fancine" e Clóvis ao lado
do co-editor Darci Fonseca. Note-se que Clóvis segura a edição que biografou
seus maiores ídolos que são Elvis Presley e Marilyn Monroe. Nessa mesma edição
está Lee Marvin que aniversaria no dia 19 de fevereiro, um dia depois do
aniversário de Clóvis Ribeiro que é comemorado no dia 18 de fevereiro.
Clóvis Ribeiro juntamente com alguns de seus grandes amigos cinéfilos:
acima com Nelson Pecoraro, Aulo 'Doc' Barretti e Nicolau Jacintho;
abaixo com Achilles Hua e Umberto 'Hoppy' Losso.

Um comentário:

  1. Grande Clóvis !! Tenho saudades do amigo !
    Será que êle aderiu às modernidades e está ligado na web ?? Será ?

    Vamos ver se ainda voltamos a comer aquela pizza com Clóvis,Darci,Achiles,Elorza e tantos outros!
    Abraço saudoso !!!

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