Comumente é atribuído a “Flechas de
Fogo” (Broken Arrow), de Delbert Mann, ter sido o western pioneiro no
tratamento simpático aos índios norte-americanos no cinema. Este blog já publicou
uma postagem esclarecendo que antes de “Flechas de Fogo” foi produzido o
faroeste dirigido por Anthony Mann intitulado “A Passagem do Diabo” (Devil’s
Doorway), este sim, o primeiro filme a tratar dignamente os índios
estadunideneses. Injustiça parecida ocorre com o western “A Lei do Bravo”
(White Feather), dirigido por Robert D. Webb. Praticamente ignorado pelos
autores de livros sobre faroestes, “A Lei do Bravo” só é citado como verbete
pelas enciclopédias do gênero. Mesmo William K. Everson em seu primoroso estudo
“The Hollywood Westerns” cita “A Lei do Bravo” em duas linhas, lembrando esse
filme apenas pelo bom aproveitamento do então novo processo Cinemascope. Tão
injustiçado quanto “A Passagem do Diabo” é “A Lei do Bravo”, filme rodado em
1954 em Durango, no México, lançado em 1955 e melhor ainda que os filme de
Anthony Mann.
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Jeffrey Hunter e Hugh O'Brian. |
Dois
bravos contra a Cavalaria - Delmer Daves que havia dirigido
“Flechas de Fogo” foi o autor, em parceria com Leo Townsend, do roteiro de “A
Lei do Bravo”, roteiro baseado em história de John Prebble. “A Lei do Bravo” se
inicia informando que a história a ser contada se baseia em fatos reais,
referindo-se evidentemente à retirada de centenas de milhares de índios das
terras onde viviam há séculos, transferidos que foram para terras mais ao Sul
de Dakota. É sempre válido lembrar que o que levou a esse processo de remoção
das tribos foram os anúncios que haveria muito ouro nos territórios ocupados
pelas nações indígenas. Foi inserida nos ‘fatos reais’ a fictícia presença do
agrônomo Josh Tanner (Robert Wagner) enviado ao Forte Laramie para iniciar o
trabalho de delimitação das terras a serem confiscadas aos índios. Antes de
Josh Tanner se apresentar ao Coronel Lindsay (John Lund) ele trava contato e torna-se
amigo dos provocadores cheyennes Little Dog (Jeffrey Hunter) e de American
Horse (Hugh O’Brian). Little Dog é
filho do chefe cheyenne Broken Hand (Eduard Franz) e irmão de Appearing Day
(Debra Paget). O chefe Broken Hand decide assinar o tratado que implica na
transferência dos cheyennes para as reservas, com o que não concordam Little
Dog e American Horse. Os dois índios sozinhos enfrentam quixotescamente as
tropas comandadas pelo aturdido Coronel Lindsay. Ao final Josh Tanner casa-se
com Appearing Day.
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Debra Paget |
Produção
Classe A sem um grande astro - “A Lei do Bravo” foi uma produção da
Panoramic Productions, associada à 20th Century-Fox. Embora com o custo
relativamente pequeno de um milhão e trezentos mil dólares, “A Lei do Bravo”
foi rodado em Technicolor, Cinemascope e com mais de mil figurantes recrutados
no México. Esse foi o primeiro western a ser rodado em Durango e em algumas
sequências observa-se a presença de mais de uma centena de cavalos, muitos
deles montados sem sela por dublês interpretando índios. Era costume dos
grandes estúdios que aplicavam o ‘star-system’ incluir jovens e promissores
atores em pequenos papéis nos filmes para impulsionar suas carreiras. No caso
de “A Lei do Bravo” os principais papéis foram entregues a Robert Wagner,
Jeffrey Hunter e Debra Paget, todos jovens contratados da 20th Century-Fox,
economizando assim os salários de astros do porte de um James Stewart, por
exemplo. Ainda assim, com atores em início de carreira, “A Lei do Bravo” é uma
produção classe A que contou com a cinematografia do já respeitado Lucien
Ballard e com trilha sonora composta por Hugo Friedhofer. Na década de 60
Lucien Ballard seria o responsável pela cinematografia de filmes como “Bravura
Indômita” e “Meu Ódio Será Sua Herança”, para citar apenas dois de seus grandes
trabalhos. Um filme com essa produção enganosamente de médio orçamento foi
dirigida por Robert D. Webb em seu quinto filme como diretor e que até então
nada havia feito de mais expressivo.
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A longa caminhada das tribos ao deixar as terras de seus ancestrais; os dois bravos desafiando a cavalaria norte-americana. |
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Eduard Franz, o chefe cheyenne; abaixo Franz com Iron Eyes Cody. |
A
cruel e verdadeira história - “A Lei do Bravo” resultou em um
excelente western que atinge plenamente o objetivo de conscientizar o
espectador sobre os fatos que levaram ao grande genocídio dos nativos
norte-americanos. Em nenhum momento do filme é atenuada a denúncia da política
criminosa praticada contra os índios e executada pelas tropas do Exército,
cumpridoras de ordens vindas de Washington. ‘América para os Americanos’, entre
os quais não se incluem os nativos da terra porque eram índios. Num crucial
diálogo de “A Lei do Bravo” a índia Appearing Day inocentemente indaga por que
razão os índios não podem viver nas terras onde vivem os invasores de seus
territórios. Se os brancos deixam suas terras para viverem nas terras dos
índios, por que Sioux, Arapahoes, Crow, Blackfeet e eles Cheyennes devem ir
para terras desconhecidas? Mostra “A Lei do Bravo” que alguns poucos índios, no
caso American Horse e Little Dog preferem morrer lutando por seus direitos que
sobreviver envergonhado como o chefe Broken Hand. O chefe cheyenne justifica
que desapareceram os búfalos de suas terras e que a falta de caça orientou sua
decisão de assinar um tratado. Seu gesto covarde possibilitou a ele sobreviver
por muitos anos mais, até mesmo, como informa o narrador do filme, ver seu neto
mestiço se formar em West Point. Mais do que uma concessão ou uma aposta na
miscigenação das raças, o casamento de exceção entre Josh Tanner e Appearing
Day soa como uma amarga crítica ao futuro dos índios.
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Broken Hand aceitando as condições do tratado imposto pelos brancos. |
O
conformismo de uma nação – Certamente John Ford assinaria sem
hesitar a belíssima sequência do êxodo das tribos em direção às terras
desconhecidas. Talvez John Ford quisesse mesmo expressar com sua méa culpa que
foi “Crepúsculo de uma Raça” (Cheyenne Autumn) um filme tão bonito e tocante
como “A Lei do Bravo”. Se este western de Robert D. Webb não chega a ser
perfeito é justamente por faltar aquele toque poético que Ford dava a seus
filmes e personagens. Quando da morte de Little Dog com Josh Banner ao lado do
amigo índio morto, cena que dura três longos minutos, ao invés de enternecer o
que Webb consegue é cansar sem nada transmitir. Mas os magníficos achados de “A
Lei do Bravo” são muitos, entre eles o treinamento dos cheyennes; o preconceito
dos cheyennes que se julgam superiores aos crows; Little Dog e American Horse
fustigando atrevidamente com seus cavalos um linha de soldados. Acima de
qualquer outra situação é perfeita a triste visão do conformismo de uma nação
índia derrotada e subjugada pela força superior de seus oponentes. A lamentar que
uma subtrama importante tenha sido reduzida, no caso a presença de Ann Magruder
(Virginia Leith), filha do comerciante racista Magruder (Emile Meyer),
estuprada aos 13 anos. Ann se interessa por Josh Tanner que por sua vez se
apaixona pela índia Appearing Day.
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Jeffrey Hunter (acima); Noah Beery Jr. e Virginia Leith (abaixo). |
Cinematografia
e trilha sonora impecáveis - A deslumbrante
cinematografia de Lucien Ballard torna-se ainda mais bonita com a impressiva
trilha música de Hugo Friedhofer, das melhores certamente entre os faroestes
dos anos 50. O uso constante da percussão pela orquestra evidência os momentos
de grande tensão. Esse conjunto torna “A Lei do Bravo” imperdível, mas há ainda
a brilhante atuação de Eduard Franz como o chefe Broken Hand, dando a seu
personagem, como poucas vezes se viu em um ator branco interpretando um nativo,
a amargura de ser responsável pela dilaceração de seu povo. Jeffrey Hunter
chega a ser caricato em alguns momentos com trajes índios mais parecidos com
fantasias de carnaval. Comprova, porém, que é um bom ator, neste filme em que
usa lentes de contato para escurecer os olhos azuis que anos depois fariam dele
o mais bonito Jesus Cristo já visto no cinema. Debra Paget praticamente repete
seu personagem de “Flechas de Fogo”, inclusive com o mesmo figurino. Robert
Wagner é muito jovem e não convence como o corajoso agrimensor, dada a
importância de seu personagem. Virginia Leith chama a atenção por sua
semelhança, inclusive na fragilidade, com Gail Russell. O bom elenco de apoio é
completado por Hugh O’Brian, o ótimo Emile Meyer, John Lund praticamente sem
ser exigido e o querido Milburn Stone (o Doc de “Gunsmoke”, também num papel
sem maiores chances de demonstrar seu real talento. “A Lei do Bravo” é um
daqueles ótimos e subestimados faroestes ao qual faltou um nome de maior peso
na direção e no elenco para despertar a atenção da crítica que praticamente o
ignorou através dos anos, como foi escrito acima.
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O índio Little Dog (Jeffrey Hunter).
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Caro Editor,
ResponderExcluirTerá sido coincidência a lembrança do branco no seu atributo de invasor, e do indígena no seu atributo de povo das terras invadidas no dia-homenagem ao elemento negro roubado de sua terra de origem? Coincidência ou não seu texto me chamou a atenção para o 20.11. Grata pela referência aos westerns que restauram a dignidade das nações indígenas ignoradas em seus direitos à terra. Sempre tenho renovada dificuldade ao conviver com a minha etnia branca e lusitana. Delicados e humanos no trato com negros e índios é que meus antepassados não terão sido e não foram. Meu avô paterno viveu a vida, ganhou seu sustento como feitor de escravos em terras de Rio Claro. Eu o amei e o amo ainda. Mas ele nunca me revelou cenas de seu trabalho nas fazendas. Sinto a tristeza da fragilidade do oprimido, tanto em mim quanto no silêncio do avô. Parabéns pelo WesternCineCultura. De resto, deliciosa e tátil cultura. Até mais, Cibele
Cara Cibele - Coincidência, sim, que sua sagacidade não deixou passar 'em branco'. O que os brancos fizeram com os índios norte-americanos não há como perdoar, recompensar, indenizar ou sei lá mais o quê. Segundo consta foi o maior genocídio da história da humanidade. E para ajudar o cinema, por muito tempo, ainda mostrou o índio como vilão das histórias. - Um abraço do Darci.
ResponderExcluirConcordo com tudo que se escreveu aqui, sobre o filme, um verdadeiro achado. Só uma correção: Tanner é agrimensor, não agrônomo.
ResponderExcluirO comentário anterior é meu, Roberto Szabunia, de Joinville. Saiu como "anônimo".
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