29 de setembro de 2012

CINE SAUDADE – DO CINE REX DE MONTE-MÓR, PARA O CINEMA DE ROY ROGERS





O primeiro filme que Narciso
assistiu em sua vida.
O menino Lázaro Narciso Rodrigues era o típico menino do interior. Morava em sítio na cidadezinha de Monte-Mór que ainda era por muitos chamada de Água Choca, nome original do lugar nos tempos em que era comarca. Narciso tinha aquele mundão para brincar, com rio, árvores, campos e montes. Filho de humildes lavradores, Narciso ia para a escola descalço e só ganhou seu primeiro calçado aos onze anos, um par de Alpargatas Rodas para ser usado numa ocasião muito especial. Foi presente de seu tio João Rodrigues, que todos chamavam de ‘Pé-de-Pato’. Tio Pé-de-Pato há tempos prometia levar o menino Narciso para conhecer o que era o tão falado cinema. Esse tio tinha aquele apelido porque já havia mergulhado dezenas de vezes no Rio Capivari para salvar quem lá se afogasse. Muitos habitantes da região deviam a vida a Pé-de-Pato. Tio e sobrinho foram para a estrada, tomaram uma jardineira Capriolli que ia para a cidade e chegaram ao cinema. O Cine Rex, no centro de Monte-Mór exibia um filme chamado “Bomba e os Caçadores de Leões”, com um menino louro, que Tio Pé-de-Pato dizia ser o filho do Tarzan, o Rei das Selvas. Pé-de-Pato dizia também ele próprio nada igual ao Tarzan.

O menino Narciso e uma rara foto do Cine Rex, da cidade de Monte-Mór
que é vista abaixo em foto do início dos anos 50. O único veículo trafegando
pela praça principal da ex-cidade conhecida por Água Choca é uma charrete.



Figurinhas Ídolos da Tela – O menino Narciso ficou encantado com o tal cinema e voltou outras vezes ao Cine Rex, de propriedade do Senhor Carlos Miller. Narciso não tinha dinheiro para o ingresso das matinês e roubava ovos dos galinheiros e os levava para seo Carlos que quebrava dois ou três e os tomava ali mesmo na porta do Cine Rex. E deixava o menino entrar sem pagar. Desconfiado que Narciso roubava aqueles ovos, seo Carlos fez um trato com o garoto: ele viria ajudá-lo a trocar os lobby-cards (pequenos cartazes), escrever as tabuletas e varrer o cinema e em troca poderia assistir às matinês de graça. Trato aceito na hora por Narciso e todos os domingos passaram a ser dia de filme de mocinho na vida do garoto. Aconteceu então de ser lançado um álbum chamado 'Ídolos da Tela' e Narciso começou a reconhecer os nomes de muitos artistas. O filho do Tarzan se chamava mesmo era Johnny Sheffield e era a figurinha número 144 do álbum. Quando jogava bafo com os amiguinhos, Narciso jamais colocava essa figurinha para disputar. Nem a de número 77, que era de uma menina chamada Margareth O’Brien que Narciso sonhava um dia ter uma namorada igual. Mas a figurinha que Narciso tinha adoração era a de número 446, com a estampa do mocinho Roy Rogers. 


Roy Rogers, o maior ídolo - Narciso já tinha visto dois filmes de Roy Rogers no Cine Rex e tinha também um gibi 'Aí, Mocinho!', com Roy Rogers na capa. De todos os mocinhos Roy Rogers era o preferido do menino Narciso. Um dia Seo Carlos disse a Narciso para trazer a família para assistir “Sansão e Dalila”. Dona Escolástica, mãe de Narciso, nunca se esqueceu desse filme tão bonito que a fez chorar no final quando Sansão morre. O sabido Narciso disse à mãe que o nome do Sansão era Victor Mature. E foi no Cine Rex que o menino assistiu, acompanhado da mãe, um faroeste chamado “Matar ou Morrer” que todos diziam que era muito bom. Mas Narciso preferia mesmo aqueles filmes de mocinho com Tim Holt, George Montgomery, Johnny Mack Brown, Scott Brady, Durango Kid, Rex Allen e mais que todos, com Roy Rogers.

Acima o Cine Vera Cruz, em Capivari; abaixo um
Ford Farlaine ano 1956 igual ao de seo Kamal,
proprietário do belíssimo Cine Alvorada.
O Ford Farlaine de Seo Kamal - Sempre que Narciso ia a passeio à casa dos parentes que moravam na vizinha Capivari, aproveitava para ir ao cinema. O preferido era o Cine Vera Cruz, muito parecido com o Cine Rex de Monte-Mór. Havia em Capivari um outro cinema mais luxuoso chamado Cine Politheama e foi lá que Narciso assistiu “Ardida como Pimenta”. Desse filme Narciso também nunca se esqueceu devido à artista loura e bonita (Doris Day) que dava trabalho para os mocinhos. Seu João Narciso e dona Escolástica, pais de Narciso acreditavam que o menino precisava aprender uma profissão e aceitaram o convite de um tio de Narciso para que ele fosse para a cidade de Leme. Lá Narciso passou a trabalhar numa oficina mecânica e aos domingos lavava carros no posto de gasolina local chamado 'Posto Barra Funda'. A alegria de Narciso era grande quando entrava no posto o automóvel mais bonito da cidade, um Ford Farlaine de propriedade do senhor Kamal, que todos chamavam 'Camel'. O dono do espetacular automóvel era também o proprietário do mais moderno e elegante cinema da região, o enorme Cine Alvorada com sua impressionante fachada com luzes de neon. 


Saguão de entrada e a enorme
sala do Cine Alvorada.
Grande cinema, grandes filmes - Num domingo, após lavar seu Ford Farlaine, Kamal perguntou a Narciso se ele gostava de cinema e o convidou para a matinê. Estava passando “O Sangue Semeou a Terra”, faroeste colorido que encantou Narciso. Essa foi uma das melhores fases para o jovem cinéfilo que, por cortesia de seo Kamal, viu no Cine Alvorada filmes como “Caçada Humana” (Don Murray), "A Última Carroça” (Richard Widmark), “Primavera de Amor” (Pat Boone) e “Sangue de Bárbaros” (John Wayne). Seo Kamal sabia da preferência de Narciso por faroestes e sempre dizia que o melhor de todos os faroestes era “Os Brutos Também Amam” e que o mocinho do filme se chamava Shane. Narciso não conhecia esse filme, mas como gostava muito de música, cantava inteirinha a canção “Cavaleiro Errante” que tocava no rádio e era interpretada por Osny Silva. Narciso sabia que aquela era a música do filme que seo Kamal tanto falava, o que só aumentava seu desejo de conhecer esse famoso faroeste.

Descobrindo John Wayne - No início dos anos 60 Narciso passou a morar em Campinas, onde dividia seu tempo livre entre os jogos de futebol do Guarani local e seu passatempo preferido que era o cinema. Nas conversas com outros fãs de filmes, Narciso sempre ouvia falar de John Wayne, ator de quem não conseguia gostar desde que o vira em “Sangue de Bárbaros” com um bigode engraçado. Porém, como estava passando um faroeste chamado “Os Comancheiros”, no Cine Casablanca em Campinas, Narciso foi assistir. Ficou impressionado com John Wayne e disse para si mesmo que nunca mais iria perder um filme daquele fabuloso ator, além de querer conhecer todos os filmes anteriores, principalmente os faroestes. Uma frustração acompanhava Narciso, que já havia assistido a tantos faroestes e ainda não conhecia “Os Brutos Também Amam”. E foi exatamente em 1965, no Cine Carlos Gomes, em Campinas, que Narciso teve a oportunidade de assistir ao faroeste de George Stevens. Não teve dúvidas. Aquele era não só o melhor de todos os faroestes, mas o melhor filme que já havia visto na vida. E como gostaria de contar isso ao amigo Kamal.

Narciso e Kamal em 1996
Reencontro com Kamal Tufic Nassif - Quando os faroestes passaram a se tornar raros nos cinemas, Narciso agregou-se à confraria dos amigos dos westerns, clube fundado por um lendário médico de São Paulo chamado Aulo Barretti. Isso aconteceu em 1987 e nesse grupo Narciso foi batizado pelo sócio Jorge Cavalcanti como “Kid Blue” devido às belas vestimentas de mocinho que usava, quase todas azuis. Em meio àqueles senhores com espírito juvenil Narciso reencontrou-se com Roy Rogers, Rex Allen, Randolph Scott, George Montgomery e outros mocinhos que eram projetados semanalmente em filmes em 16 mm. Por força de seu trabalho como funcionário da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), Narciso rodava todo interior paulista e certo dia voltou a Leme, indo procurar seo Kamal no Cine Alvorada. Passaram-se 40 anos desde os tempos em que Narciso lavava com capricho o Ford Fairlane de seo Kamal. O exibidor ao vê-lo não o reconheceu de imediato, mas ao lembrar-se do jovem Narciso abriu um enorme sorriso e o abraçou. Seo Kamal então disse a Narciso que naquela noite ele era seu convidado de honra e que, como nos velhos tempos, não precisava pagar a entrada e nem lavar o carro de seo Kamal... Ao lado do generoso e simpático amigo, Narciso assistiu ao desenho “O Corcunda de Notre Dame” e depois de muitos dedos de prosa, seo Kamal admirado falou para o visitante: “Narciso, você já assistiu muito mais faroestes do que eu...”


O Cine Alvorada quando da visita de Narciso, em 1996, vendo-se o automóvel
da CPFL em destaque. O Cine Alvorada resistiu até 2011 quando finalmente o
Sr. Kamal foi vencido pela época atual, inimiga dos grandes e bonitos cinemas.



Narciso à frente do antigo Museu de
Roy Rogers; abaixo junto às marcas
de Roy (e Trigger), em Los Angeles.
O quase encontro com Roy Rogers - Dois anos depois do reencontro com seo Kamal, Narciso foi para os Estados Unidos para realizar o sonho de conhecer seu maior ídolo que é Roy Rogers. Era o ano de 1998 e ao chegar ao Museu de Roy Rogers e Dale Evans em Victorville, próximo de Los Angeles, Narciso já sabia que não encontraria o Rei dos Cowboys. Roy Rogers, aos 86 anos de idade, estava bastante doente e hospitalizado. No museu Narciso conversou então com uma das filhas de Roy e mostrou sua carteirinha de sócio da confraria dos cowboys de São Paulo. Ao ver a carteirinha que tinha a foto de Roy ao lado da de Narciso, a filha do ator-cantor não conteve algumas lágrimas de emoção. Disse a Narciso que esperasse um pouco mais pois Dale Evans logo chegaria. De uma ala do grande museu vinha o som de "The Last of the Silver Screen Cowboys", cantada por Roy e Dusty Rogers. A música vinha da sala de projeção do museu e a filha de Roy convidou Narciso para ir até lá. Teve início então a projeção de um antigo filme de Roy Rogers que ele logo reconheceu. Era “Os Sinos de Rosarita”, assistido agora com uma emoção jamais sentida pois Narciso não estava no Cine Rex, nem no Vera Cruz, nem no Alvorada, mas sim no cinema do próprio Roy Rogers, cercado por Trigger, Bullet, roupas, chapéus, botas, revólveres e cinturões do amado Rei dos Cowboys. Terminado o filme, Dale Evans já se encontrava na recepção do museu e depois de ser apresentada e conversar com o fã brasileiro pediu a ele e aos demais presentes que a acompanhassem na música "Happy Trails (to You)".  Narciso, ao lado de Dale Evans, parecia estar substituindo Roy Rogers, cantando emocionado os versos simples da famosa canção. E ao final Narciso ganhou um caloroso abraço da Rainha das Cowgirls. Roy Rogers acabou falecendo dias depois, em 6 de junho de 1998. Quis o destino que quando do falecimento de Roy, Narciso estivesse bem pertinho dele, ali em Los Angeles, na Califórnia.

A carteirinha que emocionou a filha de Roy Rogers.

O museu em Montana - Narciso retornou outra vez ao Museu de Roy Rogers em Victorville antes que este fosse desativado. Claro que Narciso ficou um pouco triste quando soube que Dusty Rogers, o filho de Roy, havia transferido o The Roy Rogers and Dale Evans Museum para Montana. Como Narciso ainda não conhece aquele Estado norte-americano, esse será seu próximo destino internacional para conhecer o novo museu e voltar a ficar perto de tudo aquilo que pertenceu ao seu grande ídolo. Uma admiração que começou no início dos anos 50 na pequena Monte-Mór, mais exatamente no acanhado mas inesquecível Cine Rex.


Lázaro Narciso Rodrigues conhece mais de uma centena de cinemas do interior
paulista, tanto os grandes como os pequenos. Na foto acima Lazinho está com
Benedito Gamitto, no pequeno Cine Studio Paiol de Gamitto, em Botucatu;
À direita Lazinho Kid Blue com  Nelson Ricci e seu cineminha em Marília.


Acima Lázaro Narciso Rodrigues 24 vezes, ele que hoje, 30 de setembro,
comemora 71 anos de idade. Parabéns, Ol' Kid Blue.



9 comentários:

  1. Belíssima história de amor ao cinema e ao faroeste.

    Parabéns para o Narciso.

    Abraço

    ResponderExcluir
  2. Caros WesternCineMania,
    Obrigada pela narrativa sobre Kid Blue - Lazinho. Delícia ter lido o texto: aberto, direto, sincero. Parabéns ao Lazinho pela lealdade aos ídolos e aos amigos de infância. Emocionante a visita ao primeiro Museu Roy Rogers. E que breve se realize a feliz viagem ao segundo Museu, Montana. Abraços em Trigger.

    ResponderExcluir
  3. Prezado Darci,

    Embora não o conheça, quero parabenizar o Sr. Kid Blue pelos seus 71 anos de idade, seu bom gosto por westerns e principalmente por Roy Rogers.
    Apenas um comentário: "The Roy Rogers and Dale Evans Museum" como todos sabem, encerrou sua suas atividades após o falecimento de Dale Evans, sendo transferido para Branson, Missouri. No entanto, infelizmente, devido a uma série de motivos, os herdeiros de Roy Rogers foram forçados fechá-lo e leiloar praticamente todo o acervo, inclusive Trigger (Stuffed/empalhado). Esse evento foi coberto pela imprensa norte-americana e os leilões foram realizados em Los Angeles e New York em 2011/12. Todos os itens foram vendidos.

    Permanecem em funcionamento os museus de Rex Allen, em Wilcox, Arizona e o de Gene Autry (Autry Museum of America West) em Los Angeles, que é fantástico onde se vê o “real west” e o “reel West” (um trocadilho usado pelos americanos). Lá estão em exibição diversos itens de praticamente todos os cowboys e outlaws (Buffalo Bill, Wyatt Earp, Buffalo Bill Cody, Billy The Kid , Roy Rogers, Gene Autry, John Wayne, Randolph Scott, Monte Hale e muitos outros).

    Abaixo uma manchete do New York Times:

    “ROY ROGERS MUSEUM CLOSED FOREVER”
    The Roy Rogers Museum in Branson, MO, has closed its doors forever. All items went up for auction last July 14th & 15th at Christie's Auction in Manhattan.

    Grato pelo espaço,

    Mario Peixoto Alves




    ResponderExcluir
  4. Olá, Mário
    Grato pelas informações sobre o Museu de Roy e Dale, que infelizmente não mais existe. Em suas andanças pela Califórnia o nosso Kid Blue visitou outros museus, entre eles o Western Heritage, de Gene Autry, que como você disse, ele considerou fantástico e digno de ser visitado por westernmaníacos e quem cultua a história do Velho Oeste norte-americano. Quando lá esteve Kid Blue travou contato com Monte Hale que dava as boas-vindas aos visitantes. Essas histórias do Lazinho Kid Blue enchem de admiração a todos nós.
    Um abraço do Darci

    ResponderExcluir
  5. Que orgulho poder dizer que sou amigo do maior cowboy brasileiro: Lazinho, Kid Blue ! Quanto mais leio e ouço sua história, mais me identifico com ele... Grande abraço meu irmão Lazinho, que Deus o proteja, obrigado pelo carinho e por sua amizade, que tenho certeza, será eterna... abraço do Beto Montgomery !

    ResponderExcluir
  6. Caro Darci

    Linda homenagem ao Sr. Lázaro!! Parabéns pela organização de todas as informações coletadas e pelo belo texto produzido, esfera jornalística com uma linguagem poética, muito bom mesmo! Posso dizer que em vários momentos da leitura as lágrimas brotaram em meus olhos, não só pela figura marcante do homenageado, mas sobretudo, pela bela amizade de vocês!!

    Parabéns aos dois!!

    Raquel Rodrigues

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Raquel
      Obrigado pelos elogios. A história do Lázaro emociona até quem a escreve.
      Abraço do Darci

      Excluir
  7. Prezado Darci

    Mais uma vez revisitando seu blog volto a me emocionar com a singela história de um vencedor: meu pai!! Obrigado por nos proporcionar a oportunidade de ver sua história contada de forma tão verdadeira e emocionante!!

    Abraços!!

    Demetrius Narciso Rodrigues

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Demétrius
      Imagino o orgulho que você sente em ser filho do amigo Lazinho, cuja trajetória de vida, como você disse, é emocionante mesmo.
      Abraços do Darci

      Excluir