A carreira de Marlene Dietrich entrou em declínio nos Estados Unidos após o fim da parceria de sete filmes da atriz alemã com Josef Von Sternberg, em 1935. Ela retornou então para a Europa e estava filmando em Paris quando recebeu um telefonema de Hollywood, do produtor Joe Pasternak, oferecendo a ela o papel principal em um... western. Era inimaginável uma atriz como Marlene, uma das mulheres mais glamurosas do mundo, em meio a cowboys e dançando num enfumaçado e barulhento saloon. Como porém Marlene Dietrich havia saído por baixo da América, decidiu aceitar o desafio de atuar pela primeira vez em um faroeste. Marlene não poderia imaginar que esse filme seria não apenas um retumbante sucesso de bilheteria mas também que ela, aos 38 anos de idade voltaria a seus dias de glória na terra do cinema. Esse western é “Atire a Primeira Pedra” (Destry Rides Again), uma daquelas comédias que merecem ser chamadas de obra-prima.
Destry e o séquito de Kent (acima) e de sombrinha e gaiola (abaixo) |
TOM DESTRY IMPONDO A LEI À SEU MODO - A história intitulada “Destry”, de autoria de Max Brand havia sido filmada anteriormente com Tom Mix como protagonista, sendo então adaptada por Felix Jackson, Henry Myers e Gertrude Purcell para o filme produzido por Pasternak, sofrendo profundas alterações, recebendo novos personagens e um saboroso tom de comédia. A ação se passa na turbulenta cidade de Bottleneck, típica cidade do Velho Oeste onde todos obedecem ao poderoso Kent (Brian Donlevy), o dono do 'Last Chance Saloon'. Praticamente todas as ações transcorrem nesse tumultuado saloon, de onde Kent dirige a cidade com a ajuda de Slade (Samuel S. Hinds), misto de prefeito e juiz. O trapaceiro Kent e o covarde juiz Slade são acostumados a eliminar até mesmo os xerifes que eles colocam no cargo, como é o caso do xerife Keogh que misteriosamente desapareceu da cidade dando lugar ao bêbado Washington ‘Wash’ Dimsdale (Charles Winninger). O que a dupla de escroques não esperava é que, ao ficar sóbrio e ver a estrela de xerife em seu peito, Wash decidisse levar a sério a responsabilidade de seu cargo. Para isso ‘Wash’ manda chamar Thomas Jefferson Destry (James Stewart), filho do antigo e falecido Destry, um exemplo de coragem e honestidade. O jovem Tom Destry tem uma forma de agir incomum, pois só bebe leite e não carrega armas. Mal chegou Bottleneck e Tom Destry se desentende com Frenchy (Marlene Dietrich), a principal artista do Last Chance Saloon. Frenchy é cúmplice de Kent nos golpes aplicados na mesa de pôquer contra os pobres rancheiros mas se enamora de Tom Destry, e o ajuda a derrotar o torpe Kent, o sórdido Juiz Slade e os bandidos que lhes prestam serviços. Ao final, porém, Frenchy é ferida ao tentar salvar Destry de um tiro disparado pelo traiçoeiro Kent.
A irresistível Frenchy |
A LASCIVIDADE TOMA CONTA - “Atire a Primeira Pedra” é um daqueles filmes tão deliciosos de se assistir que lamentamos quando ele termina. A alegria quase inocente que toma conta de quase todas as cenas poderia ser ainda melhor e mais atrevida se a censura não houvesse cortado inúmeras frases maliciosas como quando, Frenchy após esconder moedas dentro de seu decote, ouve o personagem de Allen Jenkins exclamar: “Há muito ouro nessas colinas”. Mas com Marlene na tela não há sequer necessidade de diálogos para que a lascividade tome conta, bastando suas roupas, seu andar, seus movimentos, seu cigarro sendo levado aos lábios e o irresistível murmúrio de sua sensual voz rouca. Além disso Marlene ainda canta três canções, uma delas a provocante “See what the boys in the back room will have”, pura libidinagem que mereceu ter se tornado clássica. Este western porém sequer tem em Marlene a personagem principal, uma vez que o protagonista é James Stewart que com aquele seu jeito de Stan Laurel e com sua maneira única de falar se impõe cena a cena, não só se mostrando muito engraçado mas convencendo num personagem dificílimo do aparentemente apalermado cowboy, mocinho capaz de segurar uma sombrinha e uma gaiola, num perfeito contraponto com a figura tempestuosa de Marlene. A cavalo apenas por segundos, como que para justificar o título “Destry Rides Again”, Stewart faz uso maior de suas idiossincráticas filosofices, apesar de sua pontaria certeira com os revólveres. Aquela intensidade dramática única de James Stewart que se revelaria mais forte nos westerns da parceria com Anthony Mann pode ser percebida nas poucas sequências dramáticas de “Atire a Primeira Pedra”, prenúncio que o desajeitado Stewart viria o maior dos cowboys do cinema entre os artistas do primeiríssimo time de Hollywood.
Una Merkel, Mischa Auer (acima); Charles Winninger e Brian Donlevy (abaixo) |
ELENCO DE MORRER DE RIR - O que torna “Atire a Primeira Pedra” irresistível é o ritmo conseguido por George Marshall, já em 1939 um veterano cineasta, cuja carreira perdurou por 53 anos, de 1916 a 1969. Entre os bons westerns dirigidos por Marshall estão “O Renegado do Forte Petticoat” (The Guns of Fort Petticoat), com Audie Murphy; “O Irresistível Forasteiro” (The Sheepman), com Glenn Ford; “A Vingança dos Daltons” (When the Daltons Rode), com Randolph Scott; “Gloriosa Vingança" (Texas), com William Holden e Glenn Ford; e uma das partes de “A Conquista do Oeste” (How the West Was Won). Nenhum desses trabalhos de George Marshall conseguiu reeditaro ritmo e a qualidade de “Atire a Primeira Pedra”. O que sem dúvida muito colaborou para o brilho deste western foi o excepcional conjunto de coadjuvantes característicos encabeçado pelo russo Mischa Auer, tão engraçado interpretando o cossaco Boris Stravogin de Bardicheff, como nas comédias “Do Mundo Nada se Leva” e “Irene, a Teimosa" (My Man Godfrey). E há Charles Winninger; o bartender Billy Gilbert (que interpretou o inesquecível Herring, paródia de Herman Goering em “O Grande Ditador”, de Chaplin); e Tom Fadden perdendo sua fazenda na mesa de pôquer. Nunca se viu no cinema vilões mais engraçados que Brian Donlevy se autoparodiando com seus esgares; Samuel S. Hinds, o execrável prefeito de Bottleneck; Allen Jenkins (o ascensorista que namora Thelma Ritter em “Confidências à Meia-Noite”). A fantástica trilha sonora de autoria de Frank Skinner seria utilizada em diversos outros westerns "B" e em seriados. A cinematografia de Hal Mohr com belo trabalho de iluminação agradou tanto a Marlene Dietrich que ele a chamou para ser o fotógrafo do outro western que ela participou 12 anos depois, "O Diabo Feito Mulher" (Rancho Notorius). O mesmo George Marshall dirigiria uma nova versão de “Destry” em 1955, com Audie Murphy, criando uma sequência em que Mari Blanchard se atraca numa luta contra Mary Wickes, lembrando uma das mais memoráveis sequências de “Atire a Primeira Pedra” que é a briga de Marlene Dietrich e Una Merkel no 'Last Chance Saloon'. Em diversos outros filmes, como em “Frenchie” de 1950 (com Joel McCrea e as briguentas Shelley Winters e Marie Windsor), tentou-se produzir cena parecida, mas Marlene Dietrich era uma só, única e inimitável. Una Merkel brilha bastante como a esposa megera que manda em Mischa Auer querendo moldá-lo ao seu falecido marido que a tudo vigia no retrato pendurado na parede do quarto.
Uma briga entre mulheres que entrou para a história do cinema: Merkel e Dietrich |
ALEGORIA POLÍTICA - “Atire a Primeira Pedra” é um filme contagiante com incrível mistura de ação e música temperados com a sensualidade de Marlene Dietrich, satirizando o próprio faroeste. Mas o filme possui dois defeitos: primeiro, é um western; e segundo, é uma comédia. Poucos westerns foram elevados à condição de marco cinematográfico, escapando da discriminação que o gênero sempre sofreu; o mesmo pode ser dito das comédias, sempre relegadas pelos críticos a um plano inferior em relação aos dramas. Quando de seu lançamento “Atire a Primeira Pedra” não foi bem aceito e rotulado de western impuro. Outros autores viam nele uma paródia da situação política do mundo pré-II Guerra Mundial, com Brian Donlevy personificando Hitler e Tom (Thomas Jefferson) Destry como o hesitante norte-americano não adepto das armas. E há ainda a francesa indecisa Frenchy sem saber de que lado ficar, francesa ironicamente com o sotaque alemão de Marlene Dietrich. E como esquecer o russo (Mischa Auer) envergonhado da dominação exercida pela mulher. Pode até ter havido a intenção do produtor húngaro Joe Pasternak de realizar uma alegoria política, mas a combinação de comédia e aventura ditada por George Marshall prevaleceu para alegrar o mundo naqueles tempos de terror. Realizado há mais de 70 anos “Atire a Primeira Pedra” continua sendo um western-comédia perfeito em que James Stewart faz rir bastante e Marlene Dietrich levando a sexualidade aos westerns, tem oportunidade de demonstrar porque é uma inesquecível e insubstituível dama do cinema.
O cenário político de 1939 é alvo de observações |
Um filme de alegria contagiante. A dupla Stewart-Dietrich funciona perfeitamente e a briga entre a musa alemã e Una Merker é inesquecível.
ResponderExcluirO Falcão Maltês
Já comentei sobre esta fita em um post anterior. Vi poucos filmes de Dietrich e ela jamais me encheu os olhos. Entretanto, tenho comigo este filme e vou reve-lo. É possível que venha a ver nele tudo o que se fala de bom do mesmo e que eu deixei passar desapercebido. Porei outro comentário depois de reve-lo. Acho dificil uma mudança de posição. Mas...quem sabe, com tantas legendes eu não deixei de ver algo?
ResponderExcluirjurandir_lima@bol.com.br
Post indicado nos links da Semana.
ResponderExcluirhttp://blogsdecinemaclassico.blogspot.com/2011/10/links-da-semana-de-24-30-de-outubro.html
Como Jimmy Stewart sempre foi bom (é o maior ator que o cinema já teve, na minha opinião). Assistir a este filme no final de um "dia de Cão" te limpa de todos os problemas que você teve nele. Um filme que fica na lembrança durante muitos dias. O comentário do cinéfilo Nahud sobre a luta foi muito bem lembrado. Inesquecivel.
ResponderExcluirQue Maravilha. Assisti este filme no cine Capitolio há anos e que prazer eu ter revisto ele no you tube. Um filme marcado pela fotografia e a montagem, caso muito raro na epoca. No livro de Peter Bogdanovich ele fala muito dos bastidores este filme. Não sabia que você curtia ele, Campos.
ResponderExcluirDarci, desculpe a intimidade, vou te enviar por email fotos de todos os cinemas que marcaram a epoca de ouro do cinema na GUANABARA (infelizmente hoje Rio de Janeiro). Aguarde.
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