4 de setembro de 2011

ESTIGMA DA CRUELDADE (THE BRAVADOS) - VINGANÇA E ARREPENDIMENTO


Henry King não era um diretor de westerns. Em sua extensa carreira King dirigiu perto de 100 longa metragens e somente três deles foram westerns, porém todos eles importantes. O primeiro foi “Jesse James” (com Tyrone Power e Henry Fonda); em 1950 King dirigiu “O Matador” (The Gunfighter), com Gregory Peck. Em 1958 foi a vez de “Estigma da Crueldade” (The Bravados), talvez o menos comentado, mas sem dúvida o mais ousado faroeste de Henry King. Realizado em plena vigência do Código Hays (código de produção cinematográfica que restringia a liberdade criativa), “Estigma da Crueldade” toca abertamente no tema do estupro e mais profundamente em vingança.

Gregory Peck com o relógio e sendo mais
rápido que Stephen Boyd
EXECUÇÕES INDEVI-DAS - Vingança foi um dos temas mais abordados nos faroestes, mas nunca uma vingança foi executada com tão cruel determinação. Budd Boetticher, especialista em westerns que abordaram o assunto vingança, havia realizado dois anos antes “Sete Homens Sem Destino” (Seven Men From Now), em que numericamente a desforra seria mais clamorosa, mas havia no filme de Boetticher uma trama que se sobrepunha ao objetivo do personagem de Randolph Scott. “Estigma da Crueldade” se desenvolve inteiramente na inabalável decisão de um homem que quer ver mortos quatro bandidos. E esse homem é justamente o personagem principal, vivido por Gregory Peck, ator que em raros filmes deixou de ser a mais perfeita imagem da integridade e honradez. O roteiro de “Estigma da Crueldade” é de Philip Yordan, a partir de história escrita por Frank O’Rourke (mesmo autor de “A Mule for the Marquesa”, história em que se baseou “Os Profissionais”, com Lee Marvin e Burt Lancaster). Em “Estigma da Crueldade” um estranho chamado Jim Douglass (Gregory Peck) chega à pequena cidade de Rio Arriba para assistir ao enforcamento de quatro foras-da-lei. Com o auxílio de um falso carrasco (Joe De Rita) os bandidos conseguem escapar mas são perseguidos incansavelmente por Douglas. Na fuga seqüestram a filha de um comerciante de Rio Arriba e no caminho matam e roubam John Buttler, um velho dono de um pequeno sítio. Douglass alcança os bandidos e os extermina um a um. Primeiro o mestiço Alfonso Parral (Lee Van Cleef). O segundo é Ed Taylor (Albert Salmi). A seguir Douglass mata Bill Zachary (Stephen Boyd). Antes de executar Parral e Zachary, Douglass mostra a eles um relógio ornamentado com a foto de sua mulher. Nenhum deles a reconhece mas mesmo assim são mortos. Parral e Taylor de forma impiedosa. Quando se prepara para matar o índio Lujan (Henry Silva), Douglass descobre que sua esposa não havia sido morta pelos quatro bandidos, mas sim pelo velho Buttler. Este sitiante havia dito a Douglass terem sido os quatro bandidos os autores do estupro e morte da esposa de Jim Douglass. Consciente do engano Douglass retorna a Rio Arriba e tenta justificar seu erro na igreja com a ajuda do padre local.

JUSTIÇA POR LINHAS TORTAS - “Estigma da Crueldade” é um daqueles westerns que até hoje não obtiveram o merecido respeito e destaque, mas é um filme quase perfeito, ainda que tratando de uma temática das mais difíceis que é a justiça escrita por linhas tortas. Jim Douglass (Peck) é um homem de bem mas torna-se um matador movido pelo ódio que dele se apossou ao descobrir que sua esposa fora violentada e morta. Logo de início o espectador desconfia que Douglass foi induzido a erro e isso se dá com a magnífica direção de atores por parte de Henry King, seja nas reações de cada um dos quatro bandidos ou na expressão do próprio Peck. E o filme vai ganhando em emoção na medida em que as mortes vão acontecendo e apenas o resoluto Peck desconhece a verdade dos fatos. Os brilhantes e concisos diálogos revelam cada um dos personagens e, como nenhum western, conseguiu desvendou as almas de bandidos, no caso Parral e Lujan (Lee, e Silva). Bill Zachary (Boyd) é o bandido asqueroso na sua excitação que termina no estupro da jovem seqüestrada (Kathleen Gallant). Boyd é o bandido que deixa a certeza que seria sim capaz de ter praticado a atrocidade que lhe é imputada por Douglass. E essa sua faceta nefasta permite que ele cinicamente diga referindo-se ao relógio que lhe é mostrado por Douglass que “a mulher da foto é bem bonita...” Gregory Peck, para muitos um ator limitado, tem um magnífico momento como intérprete na cena em que descobre através de Lujan (Henry Silva) que havia matado pessoas não responsáveis pela morte de sua mulher.

Joan Collins, fora do contexto
PERSONAGEM DESNE-CESSÁRIA - Este western de Henry King possui alguns defeitos que por pouco não comprometem toda a produção. O primeiro deles é o uso excessivo de filtros escuros na cinematografia de Leon Shamroy para criar a impressão de cenas noturnas. “Estigma da Crueldade” foi uma das grandes produções da Fox para 1958 e economizar nesse aspecto de trabalho noturno é injustificável. Shamroy foi um dos mais premiados diretores de fotografia de Hollywood, com 16 indicações para o Oscar, prêmio que ganhou por quatro vezes (“Cleópatra”, “Amar foi Minha Ruína”, “Wilson” e “O Cisne Negro”). Por outro lado Leon Shamroy explora magnificamente em “Estigma da Crueldade” as montanhas de St. José Perua, a floresta de Michoacán e um povoado de Jalisco, ambos no México onde o filme foi rodado em Technicolor e Cinemascope. Ainda no aspecto técnico, merece destaque o retumbante tema principal intitulado “The Hunter” e utilizado a cada sequência em que Gregory Peck caça os bandidos. O tom sombrio em outras cenas recebe igualmente brilhante tratamento musical. Vale esclarecer que as composições são de Alfred Newman e de Hugo Friedhofer e não de Lionel Newman como indicado nos créditos do filme. O segundo problema de “Estigma da Crueldade” é o excessivo caráter religioso contido no filme, que culmina com a prolongada aparição de um coral composto por duas dúzias ou mais de crianças, todas impecavelmente vestidas, um luxo que Rio Arriba não poderia comportar. O terceiro e pior defeito deste western de Henry King é a presença injustificável da personagem Josefa Velarde interpretada por Joan Collins, atriz totalmente deslocada como mexicana. Somente a necessidade de um interlúdio romântico para efeito de bilheteria explica a presença da bonita Joan Collins. Certamente essas são falhas graves, insuficientes no entanto para quebrar a densidade dramática de “Estigma da Crueldade”.


Henry King, um diretor dos
tempos do megafone
A PARCERIA KING-PECK - Dos quatro bandidos destacam-se o enigmático índio interpretado por Henry Silva e o mestiço vivido por Lee Van Cleef, este numa forte cena clamando por piedade. Gene Evans é o sitiante assassino e Herbert Rudley o xerife Sanchez, ambos bastante bem. Uma curiosidade é a presença de Joe De Rita, que em 1958 passaria a ser o novo ‘Curly Joe’ dos Três Patetas. Gregory Peck repete de certa forma o pistoleiro resignado de “O Matador”, em que foi dirigido pelo mesmo Henry King, porém muito mais amargo em seu incontido desejo de vingança. Como contratados da 20th Century-Fox, Gregory Peck e Henry King trabalharam juntos em outros quatro filmes: “Almas em Chamas”, “David e Betsabá”, “As Neves do Kilimanjaro’ e “O Ídolo de Cristal”, este o penúltimo filme da longa carreira de Henry King. “Estigma da Crueldade” foi o 40.º classificado na enquete dos Melhores Westerns de Todos os Tempos realizada por CINEWESTERMANIA.

10 comentários:

  1. Considero esse um dos melhores westerns já feitos. Seu tema principal, a vingança, poucas vezes foi abordado de forma tão terrível, com consequências tão devastadoras para o personagem principal.

    Normalmente nos bang-bangs (e outros gêneros) o herói vai atrás de vingança e somos levados pelo roteiro a não questionar seus atos e a torcer por ele. Nunca pensamos no mal que pode advir de se fazer justiça com as próprias e/ou com juízos de valor e julgamentos apressados.

    Em "Consciências Mortas", belíssimo clássico de William Wellman, por exemplo, sabemos desde o início que está havendo um erro de julgamento na tentativa de se linchar cowboys que estavam no lugar e na hora errados. Quando vem a revelação final da inocência dos vaqueiros acusados de roubo e crime ela não nos surprende pois já sabíamos da injustiça que se cometia contra os pobres personagens. É um filme tristíssimo mas que possui um final redentor na atitude corajosa e heróica, revelada por uma carta, de um dos vaqueiros mortos.

    Em "Estigma da Crueldade" as situações não são tão simples. Aqui tudo é mais complexo, pois o roteiro mostra que os criminosos não são exatamente inocentes mas que também não mereciam ser mortos por um crime que não cometeram.
    De certa maneira, o grande vilão do filme acaba sendo o personagem de Gregory Peck, ou melhor, o seu ódio cego, que o leva a cometer atos igualmente criminosos.
    O filme é um contundente libelo contra o ato da vingança. E seu final não deixa nenhum alento para quem o assiste. Um filme como poucos.

    Edson Paiva

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  2. Édson, bela lembrança de um western muito corajoso e bem feito, "Consciências Mortas". E você tocou bem na questão da complexidade do roteiro de "Estigma da Crueldade". Fazendo minhas suas palavras, um faroeste como poucos.

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  3. Eu teria vinte coisa para falar sobre King,Peck e esta fita. Mas vou apenas dizer; possivelmente, no meu ver, este foi o post mais bem caracterizado feito pelo editor do blog.Tudo que eu teria a dizer, o editor falou. Até a cena do pedido de clemencia de Cleef, fato somente observado por catador de detalhes, pois é uma cena sutil, até a presença quase que desnecessária da bela Collins, dentre outras realidades da fita, foi aqui dito com louvor.
    Agora; quem viu O Ídolo de Cristal sabe muito bem que Peck não tinha nada de limitação.
    Ainda valorizando o conteudo deste post, gosto da colocação para Peck que diz ser ele a imagem da integridade e honradez. Acredito que ele arrastou esta clara condição em seu viver fora das telas. Quem olha para ele capta o estigma da honra, do caráter, da personalidade marcante e do carisma.
    Parabens ao editor pelas linhas perfeitas.
    jurandir_lima@bol.com.br

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  4. Edson Paiva;

    Um comentário e tanto e a contundente lembrança do formidável Consciencias Mortas, de Wellmam.
    No filme Represália, de Sherman, quase ocorre o mesmo com Guy Madison, com a turba o arrastando de dentro da cadeia para enforcá-lo por um crime que ele não cometeu.
    É por estas e outras razões que o genero FAROESTE é tão querido pelos cinéfilos de verdade e adoradores de momentos com marcas como estas.
    Parabens e siga pondo seus pontos de vista no blog, já que sua percepção de verdades é vista com muita credulidade e atenção.
    jurandir_lima@bol.com.br

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  5. Darci,

    Todos são filmes são essenciais no gênero. Apesar dos defeitos (que você mostra muito bem na resenha) gosto muito de "Estigma da Crueldade", mas confesso que prefiro "O Matador", que também mostra com muita profundidade a personagem de Peck numa rota completamente inexorável.
    Um filme que procurei por aqui e que fica como sugestão é Jubal, de Delmer Daves, que tem uma personagem também bastante densa, e embora o filme tenha um roteiro mais novelesco também oferece um bom resultado.

    Abraço!

    Lemarc

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  6. Estigma da Crueldade adentra numa variante chamada western
    psicologico. Trata-se de obra de alto nível com direção e elenco de primeira. O artigo do editor fez uma analise que abrange a totalidade dos aspectos mais marcantes do filme.
    Desta forma não há muito mais a acrescentar.Podemos dizer por exemplo o que filme impressiona sempre o assistimos, e nunca será um filme datado devido abordar problemas que fazem parte
    da vida humana. Quanto ao ator Gregory Peck sempre passou longe da palavra limitado, e quanto ao homem descrito como imagem de integridade e honradez trata-se da mais perfeita
    descrição.

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  7. Pessoal, apesar dos pequenos defeitos apontados pelo autor do blog (escurecimento de cenas, não boa caracterização do personagem de Joan Collins e do coral), para mim, é seguramente, um dos melhores faroestes já feitos.
    Francisco.

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  8. O artigo, como o blog, é excelente. O filme, porém - na minha humilde opinião - é excessivamente superestimado. O final é absolutamente frustrante.
    Ao confrontar o último bandido, e ao perceber que caçou os homens “errados”, o personagem de Gregory Peck, mais do que arrependido, fica consternado com a comédia (tragédia?) de erros na qual foi enredado. Mesmo assim, ao fim das contas, o herói livrou o mundo de três monstros – que realmente seriam capaz de cometer o crime pelo qual foram originalmente acusados (e por isso perseguidos por Peck).
    Aliás, uma correção: é o personagem de Henry Silva, e não o de Boyd, que sorri cinicamente e faz o comentário jocoso ao ver a foto da esposa brutalmente assassinada de Jim Douglass.
    E ficou barato para o personagem de Silva: afinal, ele foi cúmplice de todas as barbaridades praticadas pelo bando, e foi também particular e indesculpavelmente no mínimo omisso no estupro da bela e pobre refém, Emma, a filha do comerciante (numa sequência realmente angustiante e perturbadora). Só pelo fato dele não ter cometido o crime pelo qual era originalmente acusado NÃO o fazia inocente de nada. O índio merecia no mínimo um “balaço” no joelho, para mancar o resto da vida e aprender a socorrer uma moça quando ela grita desesperadamente por socorro. Desgraçado.
    Enfim, um filme que muitos consideram "adulto" e com "nuances psicológicas". Eu o considero confuso e amoral.
    Um abraço a todos.

    Mauricio Lobato.

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  9. Olá, Maurício, obrigado pelos elogios. Como digo na resenha, esse western de Henry King está longe de ser perfeito, mas curiosamente o resultado é satisfatório. E acredito que não seja 'superestimado' como você diz, adjetivos que caberiam melhor em, por exemplo, "Da Terra Nascem os Homens", só para lembrar outro western de Peck. Amoralidade passaria a ser um componente da personalidade de quase todos os personagens dos westerns alguns anos depois. O filme é excelente no tema da vingança injustificada.
    Abraço do Darci

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  10. Olá, Darci!

    Uma das razões pelas quais Estigma da Crueldade é reverenciado até hoje como um dos melhores filmes do gênero western, é devido ao seu surpreendente e inesperado final. Precisemos que Henry King é o responsável único por isso. Ao alterar o roteiro original de Philip Yordan, o diretor executou uma das mais acertadas e felizes decisões de sua longa carreira de meio século de cinema. Escutemos King: “A propósito de Gregory Peck, foi unicamente pela amizade dele que aceitei rodar Estigma da Crueldade, roteiro que inicialmente recusei por tê-lo achado sem pé nem cabeça. Mas Peck o amava tanto que eu disse a mim mesmo que não o abandonaria. Tomei meu avião e parti rumo ao leste, levando o roteiro que Buddy Adler havia pedido para que eu lesse. Durante o meu retorno, parei em pleno deserto em Winslow, Arizona, e o reli. Inicialmente, tratava-se de quatro bandidos que violam uma mulher, matam-na e em seguida são presos pelo assalto de um banco. O marido da mulher assassinada vem vê-los na prisão, mas eles fogem graças a um cúmplice. O marido os caça e os mata um por um, exceto o quarto por ele ter mulher e filhos. Achei completamente idiota o sujeito poupar um assassino simplesmente porque este tem mulher e filhos. Então ponderei: supomos que nenhum desses homens seja culpado. Havia no roteiro original um personagem bastante desenvolvido: um vizinho que intervinha numa cena e que informava os bandidos fugitivos. Então disse a mim mesmo: por que não fazer deste homem o culpado, por que não fazê-lo atribuir o seu crime a esses desconhecidos que passam por sua casa? Contei minha idéia a Buddy Adler, que a achou muito boa. “Mas o que dirá Peck?” ele me perguntou. “Não tema nada. Ele adora tudo que é insólito e inabitual.”

    Uma jogada de mestre!

    Abraço do Thomaz.

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