CINE SAUDADE – ARCHIMEDES LOMBARDI E SEU DOMINGO DE ‘ISCARAMUCHI’

A cidade paulista de Santo Anastácio, situada na região da Alta Sorocabana, possuía um único cinema nos anos 50, o Cine Guarani que ficava na Rua Osvaldo Cruz, 610. Inaugurado em 1945, o Cine Guarani tinha como gerente Seo Nicolau que, em 1954, contratou um menino de 12 anos para trabalhar para ele no cinema. O menino era Archimedes Lombardi que Seo Nicolau viu passar algumas vezes em frente ao Cine Guarani com um carrinho de madeira com duas rodas que o próprio garoto construíra. O gerente chamou o pequeno Archimedes e lhe ofereceu o emprego e exultante o garoto foi correndo para casa para pedir autorização a seu pai porque trabalhar no Cine Guarani seria uma felicidade para o menino. O rol de tarefas de Archimedes consistia em varrer o cinema diariamente pela manhã, limpar as poltronas e deixar a sala de exibição impecável para a sessão da noite. Seo Nicolau logo avisou ao menino que, de início, ele não receberia nenhum salário pois as coisas andavam muito difíceis e, segundo ele, o cinema não estava dando lucro. Porém o gerente disse ao pequeno Archimedes que ele poderia trazer a família toda quantas vezes quisesse para ver os filmes gratuitamente. E a família Lombardi – pai, mãe e as irmãs Lúcia, Odete e Esmeralda – se vestia com a melhor roupa para assistir aos musicais da Metro que eram exibidos nos finais de semana. Archimedes, porém, como todo garoto gostava mesmo era dos movimentados faroestes com Rocky Lane, Johnny Mack Brown, Durango Kid e Bill Elliott.

Os mocinhos preferidos do menino Archimedes: Allan 'Rocky' Lane,
Durango Kid (Charles Starrett), Johnny Mack Brown e 'Wild' Bill Elliott.

O Grupo Escolar 'Enrico Bertoni',
onde Archimedes Lombardi
estudou; abaixo alguns dos
professores do colégio em 1958.

Braço direito do gerente - Além de manter o cinema limpo, Seo Nicolau ainda obrigava Archimedes a ir até a Estação para fazer a troca das latas com rolos de filmes. Archimedes com sua carriola chegava à Estação de Santo Anastácio e esperava a chegada do trem da Sorocabana que vinha de Presidente Prudente. O garoto entregava os filmes exibidos e trazia os que seriam programados a seguir, cujas latas tornavam a carriola bastante pesada. Achando que o menino trabalhasse pouco, certo dia Seo Nicolau chamou Archimedes e disse a ele que, nas matinês de domingo, alguns garotos estavam pulando o muro vizinho ao Cine Guarani, muro que dava no corredor do cinema. Daí os traquinas conseguiam entrar na sala de projeção sem pagar ingresso. O gerente incumbiu Archimedes de ‘montar guarda’ no corredor e impedir a ação dos espertinhos de Santo Anastácio. Ocorre que os garotos que escalavam o muro eram amigos de Archimedes, todos alunos, como ele, do Grupo Escolar Enrico Bertoni. essa missão deixou o pequeno Lombardi numa situação difícil de solucionar. Havia uma responsabilidade a cumprir, mas por outro lado havia a amizade dos garotos, companheiros das peladas de rua, dos jogos de bolinha de gude, das tardes nadando no córrego e de muitas outras brincadeiras. E com esses amiguinhos Archimedes compartilhava ainda a grande emoção de desfilar na Rua José Bonifácio, nas comemorações cívicas, representando garbosa e orgulhosamente o ‘Enrico Bertoni’.

Acima foto do Cine Guarani, em Santo Anastácio (note-se que estava sendo
exibido o western "Buffalo Bill", com Joel McCrea); na outra foto a
Rua Osvaldo Cruz nos anos 50 sem calçamento e sem meio-fio;
abaixo uma fanfarra e a Força Pública de Santo Anastácio preparando-se
para desfilar na Rua José Bonifácio, onde Archimedes desfilou várias vezes.

Grande sucesso de público, o filme
"Scaramouche" custou o emprego do
menino Archimedes; na foto abaixo
Stewart Granger, Janet Leigh e
Mel Ferrer.

“Entra todo mundo!” - Archimedes mesmo ficou entre a cruz e a espada quando foi anunciada a exibição de “Scaramouche”, filme muito comentado e que diziam que tinha uma luta de espadas que durava quase meia hora. Cinco amiguinhos de Archimedes imploraram a ele para que os deixasse entrar somente naquele domingo para poderem ver o duelo de espadas, mas o guardinha do corredor se manteve irredutível. Chega o domingo à tarde com Archimedes em seu posto feito um cão de guarda. De repente, do outro lado do muro, ouviu-se um sussurro: “Archimedes, deixa a gente entrar, só hoje, vai...” “Puxa vida, Archimedes, a gente quer tanto ver o Iscaramuche...” “Só hoje, Archimedes, a gente jura por Deus...” O pequeno Lombardi já havia adquirido a paixão pelo cinema que o tornaria conhecido em São Paulo décadas mais tarde, paixão que para ele só tem razão de ser se compartilhada com outras pessoas. A altura do muro era de mais de dois metros e um menino poderia se machucar caindo daquela altura. Foi então que Archimedes tomou uma decisão que faria dele o herói da garotada. Havia um portão no corredor e Archimedes sabia onde ficava a chave desse portão. Não teve dúvidas, de posse da chave abriu o portão e disse para os amiguinhos com a fala mansa, característica que conserva até: “Entra todo mundo, mas sem fazer barulho.”

O Cine Guarani, vendo-se à esquerda o portão que foi aberto por Archimedes
para seus cinco amiguinhos assistirem "Scaramouche" sem pagar o ingresso.

Na foto acima a Avenida Dom Pedro II
em 1952. Os únicos veículos na foto são
uma charrete e um Jeep Willys e ao
fundo está a Igreja Matriz, vista abaixo
em foto mais recente

Do Guarani para o Paroquial - Parece que naquela tarde Stewart Granger e Mel Ferrer duelaram com maior elegância e agilidade provocando a estupefação da plateia. Eleanor Parker e Janet Leigh, atrizes do filme, estavam mais lindas que nunca com suas reluzentes perucas. Apesar de já haver rodado por quase todos os cinemas da Alta Sorocabana, “Scaramouche” ainda estava em muito bom estado e não apresentou nenhum daqueles cortes abruptos, como normalmente acontecia com outros filmes exibidos no Cine Guarani. A plateia vibrou intensamente e mais que todos os cinco penetras autorizados por Archimedes que para eles virou um herói tão corajoso como ‘Iscaramuchi’. Porém esse fato não mais se repetiria pois alguém percebeu a entrada dos cinco garotos e ao final da sessão, bastante nervoso, Seo Nicolau despediu sumariamente o menino Archimedes. Mas como naquele provérbio ‘Quando Deus fecha uma porta, Ele abre uma janela’, na semana seguinte o padre da paróquia de Santo Anastácio chamou Archimedes para participar da exibição de filmes que era feita na paróquia. O cineminha da igreja era conhecido como ‘Cine Paroquial’ e funcionava somente aos domingos em um amplo salão cujas grandes janelas tinham que ser cobertas por cortinas para impedir a entrada do sol da tarde. O padre queria que Archimedes ajudasse na projeção que era feita com um projetor Kodak norte-americano, o primeiro que ele viu de perto pois fora proibido por Seo Nicolau de entrar na sala de projeção do Cine Guarani. No ‘Cine Paroquial’ eram exibidos faroestes e seriados em cópias bastante gastas e que eram cedidas à igreja para exibição não-comercial. Foi ali que Archimedes pegou o gostinho pela projeção de filmes (gratuitamente), prazer que desenvolveria pela vida afora levando a um grande número de pessoas a mesma alegria que tiveram seus amiguinhos naquele domingo no Cine Guarani, em Santo Anastácio, há 60 anos atrás.  

Sempre ligado à área de comunicação e entretenimento, o 'cameramen'
Archimedes Lombardi filma um capítulo de novela da TV Tupi
em meados dos anos 70.

Archimedes e o escritor Antônio Leão da Silva Neto; à direita Archimedes
e um projetor no Museu Antônio Vitusso com a imagem de Vitusso atrás.

Archimedes exibe uma lata com um dos filmes em 16mm de sua enorme
coleção; à direita, com a costumeira irreverência e simplicidade
dando mais uma entrevista para um órgão de imprensa.

O gênero western é até hoje um dos preferidos de Archimedes Lombardi;

Archimedes em seu escritório, onde programa os filmes que serão exibidos
na Biblioteca Municipal 'Roberto Santos', no bairro do Ipiranga (SP).